TRIBUNA
Em Janeiro de 1999

Por Sérgio Ribeiro


Em qualquer publicação que se preze, nos últimos números de um ano que termina e/ou nos primeiros do ano que começa há sempre o tom de balanço e de prospectiva. Assim acontece também com os escritos de qualquer comentador da actividade política e, mais ainda, da económica.
Calendário oblige.
1998, foi mau ou bom? Para quem?
1999, como é que vai ser? Para uns... e para os outros.

O ano de 1998 foi, consensualmente, um ano de crise económica. Porque as perspectivas não foram cumpridas nas médias previstas; porque houve agitação monetária e riscos graves ligados à instabilidade; porque a "crise asiática", tal como as gripes da mesma origem, se espalhou e quase fez epidemia. E melhor ainda se diria se se precisasse que os problemas da "periferia", num mundo cada vez mais internacionalizado, para lá foram levados a partir do "centro" e dos capitais em libertina circulação, e de lá retornam ao "centro", em efeito boomerang" ou não fosse a globalização - quando nasce (e no caso de existir...) - para todos.
Mas 1998 também teria sido - dizem alguns...- um ano de maravilhas. Em cor de rosa. Sobretudo porque, segundo dizem esses mesmos, foi o ano em que se avançou para o euro. Não têm, evidentemente, a capacidade de discernimento para ver que como tal decisão foi forçada, foi artificial, foi política e ao serviço de interesses transnacionais privados. Ou não querem ter esse discernimento e distanciamento (à maneira de Brecht) porque o que é preciso é impressionar, é convencer mesmo que convencido não se esteja, para que todos tomem por bom o que só será bom - ou até óptimo - para alguns interesses e interessados...
Pelo meu lado, insisto na ideia que vou tentando deixar pelas folhas que me acolhem prosa de que os balanços ou as análises que se apresentam com base nas médias são muito pobres e que a realidade deve ser avaliada tendo em conta as desigualdades e as assimetrias. E que o critério mais justo para dizer se um ano, uma estratégia, umas políticas foram boas ou más deveria ser escorado na avaliação do modo como essas desigualdades e essas assimetrias evoluíram, para além do que foi o comportamento das médias que ignoram as dispersões.
Dizer que aumentou o nível de satisfação médio das populações pode esconder que aumentou o número dos pobres, dos excluídos, dos que diminuíram o seu nível de satisfação das necessidades, enquanto outros aumentaram desmesuradamente o seu poder económico, melhor, financeiro. É a permanente actualização da velhíssima história de uma galinha e de dois homens, que a estatística dirá ser metade de cada um embora se possa dar o caso de só um a comer, ou de um se banquetear com a carne limpa e o outro mal lhe roer os ossos.

O balanço do ano económico na perspectiva dos negócios

Menos estatisticamente parabólico, não posso deixar sem comentário, nesta oportunidade de balanço, um programa que a televisão portuguesa ofereceu aos portugueses que vivem ou andam pelo mundo, como o teria feito aos que por cá passaram as festas. Foram três distintos (um até tem Fidalgo por apelido, e outro aperalta-se de lacinho de seu hábito) economistas à conversa sobre o ano (por eles dito económico) de 1998. E foi um discorrer ameno sobre os negócios, sobre os empresários, sobre os gestores, como se de economia estivessem falando.
Para quem não teve o privilégio dessa audição, deixo a pérola de um dos participantes ter considerado como o pior empresário do ano o prof. Marcelo Rebelo de Sousa na (não só) implícita interpretação de que mal teria posicionado a sua "empresa" no "mercado político" ao meter-se com os colegas empresários em geral, e com o intocável Belmiro de Azevedo em particular. É claro que, da conversa informal, se tiraria que este último foi o melhor "economista", empresário, gestor do ano, fez os melhores negócios, conseguiu o pleno na "economia de casino". Apenas com uma pequena sombra: terá exagerado naquela humilhação por que fez passar os deputados, obrigando-os a levantar cedo e a começar a trabalhar às 8 horas da manhã (ver a excelente e esclarecedora tribuna de 23 de Dezembro, assinada por António Filipe).
Com o ar de quem domina matérias complicadíssimas para que, no entanto, qualquer "jogo do monopólio" das nossas infâncias nos teria preparado, os três distintos economistas (faça-se justiça para a procurada contenção de um deles, sem que, no entanto, algo tenha feito para inflectir, por pouco que fosse, o rumo da conversa... económica) fizeram-me lembrar quem tratava a economia como aquilo que fazia "saber fazer" melhor que meras "contas de mercearia", das de gancho. Só que, agora, há "mercearias" com dimensão transnacional e é grave que as contabilidades sejam as mesmas, sem se ter em conta o que é nobre (sem ser fidalgo) na "coisa económica", ou seja, que necessidades sociais ajudou a satisfazer, e como.
Naquela tertúlia televisiva, o ridículo pairou, sempre bem enroupado no à vontade auto-suficiente de quem circula pelos corredores e entra nos gabinetes, conhecendo os segredos que são (pelo menos, eram) a alma dos negócios.
Por último, tratando-se do balanço de 199 e da prospectiva para 1999, o euro tinha de ter um lugar central. E teve.

A palavra de um "eurocrítico"...

Se o euro foi o motivo do nosso (deles) orgulho, nada está ganho em definitivo para ninguém. Eles o reconhecem com alguma lucidez. A lucidez que falta quando se enfatiza a criação da moeda única (para 11 Estados-membros de uma "Comunidade" de 15, por agora) como um acontecimento histórico relevantíssimo. Único.
Não vamos cair - os "eurocríticos", como agora passou a adjectivo aceitável o que era anátema inadmissível - na simétrica posição. Dizendo ou que não teve importância nenhuma, ou que os problemas que se prevêem para 1999 têm a sua origem no euro. Vêem de trás e de mais fundo do capitalismo.
1999 será um ano difícil. Nisto parece haver inabitual consenso.
Uns procurarão enfrentaras dificuldades com a bacoca habilidade de pedir sacrifícios e confiança. Porque os dias melhores estariam aí à porta. Pois se até já cá está o euro que tudo vai melhorar...
Mas o sacrifício, no ver deles, será desproporcionado. Aliás, na proporção inversa da que seria a hierarquia dos sacrifícios se se procurasse diminuir as desigualdades e as assimetrias. Quer dizer, os sacrifícios serão para os que menos os podem fazer, e pouco ou nada sacrificará (ou até retirará benefícios) quem muito tem para poder sacrificar... sem sacrifício.
Outros, dirão que o que há a fazer é mudar de políticas. E insistirão, até, na tecla de que basta de tanto falar (e mal) de políticos, procurando fazer esquecer que todos o somos, e que mais que todos o são Belmiros e Companhia, com responsabilidades ilimitadas.
O que é preciso é discutir políticas. E como, e por quem, as pôr em prática.

Em ano de eleições - para o PE e para a AR -, é o que importa começar - e já é tarde - a preparar. Urgentemente.
Vai haver quem, sendo co-responsável por esta política e dela tirando proveitos (e exploração), reconheça as dificuldades conjunturais embora delas vá procurar retirar mais proveitos (e exploração); vai haver quem, sendo co-responsável por esta política por a querer julgar sem alternativa, dela vá tirando proveitos (e exploração), lamente as dificuldades conjunturais, as tome por fatais, e procure viver o melhor possível com o que aceitam como fatalidade (os outros?... paciência, que se arranjem e façam boa gestão da caridade que lhes é destinada). O que é preciso é aumentar a produtividade e a competitividade, dizem em coro.
Há, e vai continuar a haver, os que procuram as causas, denunciam as responsabilidades, recusam a(s) fatalidade(s)... e lutam. Estes são os políticos de outra política. Com os trabalhadores. Mas é preciso dizer-lhes.

A propósito da quadra: bom ano e bom trabalho!


«Avante!» Nº 1310 - 7.Janeiro.1999