Com os Sem-Terra
no Rio Grande do Sul

Por Urbano Tavares Rodrigues


À beira de uma pequena cidade gaúcha, a trinta e tal quilómetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, apareceu-nos num vale, com floresta escura ao fundo, o acampamento dos Sem-Terra. Íamos acompanhados por Joan Turner Jara, a viúva de Victor Jara, assassinado, após tortura, pelos oficiais de Pinochet, em Santiago do Chile.
Joan é uma mulher alta, de olhos azuis tão luminosos como o sorriso, o cabelo branco, ainda bela aos cinquenta e muitos anos.

Foi um dos momentos mais emocionantes da minha existência. Passámos sob alas de machados e gadanhas erguidos ao alto, a inesperada guarda-de-honra que nos faziam os deserdados da terra, aqueles homens magros, de rosto encovado, quase sem idade, marcados pela pobreza e pela dor, que constituem hoje uma vanguarda revolucionária do mundo, vezes sem conta dizimados e sempre a crescer, perante a expectativa e o secreto aplauso – por vezes mesmo explícito – das populações urbanas, assustadas com a criminalidade e que vêem na reforma agrária uma possibilidade de desviar para os campos as falanges de miséria, quantas vezes à beira do roubo como último recurso, que percorrem os calvários das grandes metrópoles.
Mas o presidente Fernando Henrique Cardoso, empenhado na via do capitalismo neoliberal como solução para os grandes problemas económicos e sociais do Brasil, não se tem minimamente interessado pelo esforço de justiça e redenção e até de progresso que representa a luta dos Sem-Terra, quando a fixação dessas populações famintas em terras inaproveitáveis certamente traria a tantos e tantos paz e felicidade.
Praticamente quase só se têm verificado assentamentos, nestes últimos anos, no Estado do Rio Grande do Sul, governado pelo Partido dos Trabalhadores, com o apoio do Partido Comunista do Brasil.
São frequentes, sobretudo no Nordeste, os assassínios perpetrados por jagunços dos fazendeiros poderosos ou pela própria polícia, mesmo depois do escândalo nacional ocasionado pelo massacre de Eldorado dos Carajás.
A pobreza espalma os seus dedos amarelos sobre o acampamento, com um rasto de carências, olheiras negras, maxilares descarnados; mas sente-se uma força imensa, quase febre, nos cantos daqueles homens e mulheres, palavras escritas e musicadas por poetas e artistas solidários com a sua esperança exasperada.
Só as crianças, algumas lindíssimas, com os olhos luarentos dos mulatos, muitas delas loiras, descendentes de alemães e de polacos, filhas de emigrantes caídos no desemprego, na indigência, brincam, divertem-se com a nossa chegada, simples raízes novas daquele combate incessante e da vontade tenaz de encontrar o éden.
Há no acampamento de madeira e folha de zinco salas minúsculas de alfabetização, improvisadas, uma farmácia tosca e muito pobre, um posto de pronto-socorro, que se reduz à marquesa e a duas cadeiras, a meia dúzia de frascos com remédios. E tudo isso é tão bonito, na sua escassez, como as simples explicações que nos dão, como as frases, essas muito lúcidas, dos jovens trabalhadores que numa clareira da mata improvisam um debate político, que de certo modo lembra uma peça de Bertolt Brecht.
A escola itinerante dos acampamentos do MST, com avaliação global, participativa e contínua, garante aos alunos um certificado para eventual ingresso nas escolas regulares do Brasil dos outros. E é um processo fascinante de aprendizagem mútua de professores e alunos (crianças e adultos) onde as preocupações da comunidade imprimem uma direcção especial ao ensino.
Ali fala-se amiúde em nova sociedade, com uma crença assombrosa na certeza da mudança. Nos assentamentos – terras conquistadas – onde vivem famílias isoladas ou grupos em sistema de cooperativa, permanece muito viva a memória do sofrimento passado e da batalha que lá fora continua. Há universidades brasileiras que contribuem para o progresso e o sistema de educação do Movimento dos Sem-Terra.
Já houve no passado vistorias legais e desapropriações dos latifúndios improdutivos. Mas o orçamento actual inviabiliza esse processo, retirando-lhe quase duzentos milhões de reais. Aliás, concede progressivamente menos dinheiro para a agricultura. O governo de Fernando Henrique Cardoso volta-se, cada vez mais, para a importação de produtos agrícolas, aumenta as taxas de juros aos camponeses, corta verbas ao Instituto da planeada Reforma Agrária.
É neste contexto que, apesar de tudo, o Movimento dos Sem-Terra cresce.
Deixámos o acampamento onde se agitavam as bandeiras vermelhas do PT, com abraços, sorrisos e apertos no coração. Havia lágrimas escondidas nos rostos dos que nos acompanhavam, mas ao mesmo tempo em todos nós pulsava uma força nova, uma crença ali afervorada, para lá do provável e do racional, no combate e na vitória daquela gente que desafia todos os obstáculos, todas as traições, todos os crimes impunes, e confia na transformação da sociedade, num homem do futuro, irmão do homem.

Do Brasil chegam-nos, à última hora, notícias de que o Movimento Sem-Terra, cujo avanço foi ali importante em 1998, ocupou novos espaços no Rio Grande do Norte. Outras notícias, essas bem amargas, relatam-nos que trabalhadores do Movimento Sem-Terra foram torturados cruelmente pela Polícia Militar no Estado de Tocantins, além dos dois jovens líderes assassinados no Estado de São Paulo, crime este que se receia venha a ficar sem castigo.


«Avante!» Nº 1310 - 7.Janeiro.1999