Tocar piano... e falar português!
Ao olhar-se para a programação musical que
o canal de maior fausto, visibilidade, ruído e promoção do
nosso serviço público de televisão normalmente transmite,
dir-se-ia que, em Portugal, qualquer limitação atávica faria
com que se não desse conta da existência de música clássica
entre nós ou de músicos portugueses nesta área, tão poucas
são as oportunidades de ela e eles serem objecto de qualquer
destaque, em tantas e tantas horas de emissão, ao longo dos
dias, dos meses, dos anos, substituída que é pelas doses
cavalares de música pimba.
E, no entanto, se olharmos para o noticiário cultural ou para as
recensões críticas insertas na nossa imprensa diária ou
semanal e se constatarmos a multiplicidade de acontecimentos
públicos nesta tão importante área do nosso panorama
artístico, não deixamos de ser alertados para o facto de,
também aqui, a RTP aparecer junto dos seus espectadores
completamente divorciada da própria realidade em movimento,
exterior à sua olímpica e sistemática ignorância, divorciadas
que estão as suas câmaras de acompanharem, minimamente que
seja, uma tão rica e diversificada actividade cultural.
É por isso que os melómanos portugueses não deixam de saborear
com particular atenção todas as oportunidades (e são tão
poucas!) que pelo menos a RTP 2 lhes proporciona de ver e
ouvir músicos portugueses fazer prova das suas aptidões
musicais, isto mesmo quando até o pequeno espaço de magazine
musical deste canal parece ter desaparecido da sua grelha de
programas.
Vem isto a propósito de mais uma emissão
do espaço televisivo «Artes & Letras» que, no
passado Domingo, nos trouxe ao convívio nocturno as
personalidades e os talentos de dois ainda jovens mas já maduros
pianistas portugueses: António Rosado e Pedro
Burmester.
Da autoria de Paula Aresta, a organização do programa
partiu de uma concepção que se ia percebendo ter sido planeada
antecipadamente e não encontrada a posteriori na própria
montagem do material gravado. Tratava-se de averiguar, com maior
ou menor desenvolvimento, o trajecto de cada um dos músicos em
presença, tendo como ponto de partida alguns temas claramente
definidos: o primeiro despertar da consciência artística, o
período de estudo no país ou no estrangeiro, a importância
perdurante dos conselhos dos docentes, a orientação das
carreiras profissionais, as influências dos artistas mais
consagrados, os gostos e os hobbies de cada um, o ambiente
familiar, etc., etc.
O dispositivo encontrado para nos irem sendo reveladas as
opiniões e os percursos individuais de cada um dos músicos foi
o da montagem paralela das entrevistas feitas
separadamente - o que, sendo um processo tradicional e conhecido,
óbvio e aceitável, não se terá porventura relevado
particularmente imaginativo, uma vez que, tudo somado, faltou no
conjunto do programa um qualquer rasgo que o torna-se, de um
simples documentário de rotina, em um objecto televisivo
susceptível de nos surpreender ou até emocionar pela novidade
ou pela invenção.
Foi pena, por exemplo, que, embora filmados e seguidos em
separado, os dois músicos se não tivessem encontrado no final,
numa qualquer peça para dois pianos, em que ambos pudessem
finalmente dialogar e confraternizar musicalmente um com o outro,
como que forçando a excepção à regra de que duas linhas
paralelas jamais se encontram!
Independentemente desta reserva, deve dizer-se que o
documentário acabou por fluir com uma descontracção
agradável, incentivada aliás pela própria postura dos dois
músicos, que nos surgiram na sua faceta de pessoas «normais» -
com gostos como qualquer um de nós, anónimos espectadores, até
apaixonados pelo futebol ou pela culinária, para além das
entusiasmantes e suculentas páginas de Ravel, Schumann,
Bach, Rachmaninof, Liszt ou Chopin -
e felizmente afastados daquela imagem clássica e tradicional do
artista iluminado, encerrado numa redoma acima ou para além de
qualquer tentação deste mundo.
Outro aspecto positivo do programa foi, apesar das limitações
já conhecidas, a inserção de abundante e até surpreendente
material de arquivo referente aos primeiros passos dos dois
pianistas, embora se tivesse sistematicamente ignorado qualquer
informação sobre as peças tocadas (apenas referidas no
genérico final) e, acima de tudo, o quando e o onde
da filmagem ou gravação desses documentos, para além de ser
perfeitamente absurda e inaceitável a sequência final em que
uma actuação pública de António Rosado é encenada
(até com palmas gravadas e vénia a agradecer os aplausos!),
como se de uma qualquer sitcom se tratasse.
Por último, uma nota de espanto que não pode ficar no
esquecimento. Anunciado nas legendas iniciais como um trabalho
assistido financeiramente pelo Ministério da Cultura,
através do seu IPACA circunstância que não é
demais enaltecer como é possível que, sendo
fundamentalmente produzido, pago e transmitido pela estação
pública de televisão, os próprios meios de produção desta
(também subsidiada pelo Estado) sejam substituídos pelos de uma
empresa privada de televisão? Que estão os (desocupados)
profissionais da própria RTP a fazer? Como é possível
desbaratar, assim, os vultuosos meios financeiros canalizados por
uma das vias governamentais, ainda por cima a da tutela? Francisco
Costa