Mão
dura em Cuba
contra a delinquência e a marginalidade
Por Miguel Urbando Rodrigues
Dois acontecimentos, ambos no mesmo dia, 5 de Janeiro, marcaram a vida cubana. O primeiro foi o discurso em que Fidel Castro tornou pública uma autêntica declaração de guerra à deliquência e a todas as formas de marginalidade social. O segundo foram as medidas anunciadas em Washinton pela Casa Branca que, simulando atenuar os rigores do bloqueio, vieram reforçar a política de agressão norte-americana contra a Ilha. Ambos, embora produzindo reacções antagónicas tiveram enorme impacte. O primeiro foi festejado; o segundo provocou sentimentos de indignação.
Fidel aproveitou o 40º
aniversário da criação da Polícia Nacional Revolucionária
para se dirigir no Teatro Karl Marx a milhares de membros daquela
organização. O tema central foi uma resposta abrangente ao
aumento da delinquência sob multiplas formas. Por se tratar de
um problema que nos últimos anos tem constituído uma das
preocupações fundamentais da população, marcando a vida das
famílias cubanas, a intervenção de Fidel, pelo tom e pelo
conteúdo, sensibilizou profundamente o país.
O discurso - retransmitido pela TV integralmente dias depois -
durou cinco horas, mas teve uma das maiores audiências dos
últimos tempos.
Fidel ocupou-se praticamente de todas as modalidades de delito.
Principiou pela droga. Através de informações divulgadas pelas
agências noticiosas e pelas autoridades colombianas, soube-se em
Cuba, no início de Janeiro, que o território nacional estava a
ser utilizado como ponto de escala de apreciáveis quantidades de
cocaína destinada à Europa. Uma firma de plásticos, dirigida
por dois empresários espanhóis (actualmente foragidos),
utilizava contentores com fundos falsos para introduzir a droga
em trânsito.
Simultaneamente, quantidades crescentes de cocaína e marijuana
têm entrado no país trazidas por turistas. Pela primeira vez em
muitos anos a droga fez o seu aparecimento em discotecas, centros
de juventude e lugares de diversão, em Havana Velha e no
Malecón, a grande avenida marginal. Em comparação com a
Europa, o fenómeno apresenta proporções insignificantes. Mas
em Cuba dói muito.
Turismo, prostituição e violência
As causas são conhecidas. O
turismo e a tolerância da Revolução permitiram nos últimos
anos um recrudescimento perigoso das actividades delitivas. Os
proxenetas, por exemplo, deram um novo rosto à prostituição.
Em muitos bairros de Havana vinham actuando de maneira ostensiva,
controlando o negócio. Quase impunemente, facilitavam também ao
turista o aluguer de quartos para encontros com as gineteras.
Quando presos em flagrante, saíam quase logo da cadeia.
Obviamente a prostituição em Cuba não é comparável à das
sociedades de consumo. Fidel, para explicar ao povo o que se
passa nas grandes metrópoles capitalistas, aludiu aos anúncios
hoje rotineiros no Ocidente em que as prostitutas fazem a
apologia das suas especialidades e aos requintes publicitários
em que algumas mulheres se apresentam como viúvas ou grávidas
para estimular os apreciadores de fantasias eróticas. Em Cuba
essas coisas parecem de outro mundo.
Aqui não há sex shops e falta à prostituição o exibicionismo
comercial que a caracteriza na Europa e nos EUA. O seu
reaparecimento em força depois de quase ter desaparecido é,
entretanto, uma chaga aberta na consciência ética de uma
sociedade socialista. Daí a campanha ora desencadeada para a
combater sem contemplações assim como a todas as formas de
violência e de corrupção.
A Ilha orgulha-se de ser o país com menor incidência de Sida no
mundo. Fidel informou que o total de seropositivos não deve
exceder l200 casos. Mas a vaga turística constitui uma fonte de
contaminação praticamente incontrolável; a Sida tende também
a aumentar.
O tema do aluguer ilícito de casas foi largamente tratado, assim
como o da violência, nomeadamente os roubos, desde os pequenos
delitos - o esticão nas ruas - ao assédio aos turistas no
aeroporto, ao furto de carros, ao assalto a residências
familiares.
Havana continua a ser - como o Wahington Post reconheceu numa
reportagem recente - a capital com mais baixo indíce de
violência da América. Mas a insegurança cresce. «O delito -
como sublinhou o jornal Juventud Rebelde em artigo elogiado por
Fidel - é a melhor quinta coluna para aqueles que apostam no
fracasso dos modelos político e económico de Cuba».
Daí a necessidade urgente de o combater eficazmente em todas as
frentes. Por um lado impõe-se uma revisão do Código Penal,
marcado por um paternalismo ingénuo. Por outro lado, a Polícia
tem de recorrer a novos métodos na luta contra a criminalidade.
Os cubanos estão mal preparados para conviver com o delito e
combatê-lo.
Rever o Código penal
«A Revolução não tem de
renunciar ao seu caracter humanitário para ser firme e
rigorosa», afirmou Fidel. Com esse objectivo o governo vai
propor ao Conselho de Estado e à Assembleia Nacional do Poder
Popular um agravamento das penas, até agora suavíssimas, que
atingiam o submundo da delinquência.
Fidel sugeriu aos legisladores mão pesada contra os criminosos
internacionais que utilizam o território cubano para o tráfico
de droga (30 anos ou prisão perpétua e em certos casos a pena
capital). Na sua opinião os assaltantes de casas habitadas que
praticam ali actos de violência merecem sentenças não
inferiores a 20 anos. Uma pena idêntica poderá atingir os
proxenetas.
A prostituição não é considerada crime pelas leis cubanas.
Não se prevê alteração. Fidel acredita que a recuperação
das gineteras não é tarefa impossível desde que se
modifique o quadro actual, com a eliminação da rede de
proxenetas. A última parte do discurso foi dedicada à reforma
da instituição policial, de modo a que ela possa cumprir a sua
função social de maneira adequada.
Noutro país um encontro como este entre o Presidente da
República e a Polícia seria inimaginável. Em Cuba não foi
apenas natural. O povo cubano não somente o aprovou como aderiu
ao projecto esboçado por Fidel. O que pode ser comum, rotineiro,
em grandes cidades do mundo capitalista é considerado
inadmissível em Havana, coração e símbolo de uma Revolução
Socialista que faz do respeito pela ética um valor supremo.
Uma Brigada Especial para o combate ao crime já foi criada;
centenas de carros novos, com moderno equipamento electrónico,
apareceram nas ruas. O balanço inicial é positivo. Desde que a
Brigada começou a operar na Havana Velha - o principal foco de
marginalidade da cidade - os delitos diminuíram ali 75%.
Fidel Castro tem consciência de que o povo cubano continua a
pagar um preço altíssimo pela sua opção revolucionária.
Segundo ele qualquer outro país submetido a um tipo de agressão
similar não teria podido resistir nem seis meses às carências
resultantes da situação criada desde o início do Período
Especial.
Sabia-se que o turismo - hoje primeira fonte de divisas com as
remessas dos emigrantes - seria uma porta escancarada para a
introdução de muitos dos males do capitalismo. Isso aconteceu.
O turismo trouxe a droga, facilitou a difusão da Sida, promoveu
a desigualdade social, estimulou o reaparecimento da
prostituição, criou condições para o alastramento da
marginalidade, da violência, de múltiplas formas de
delinquência. Mas sem o Turismo a Revolução não teria podido
sobreviver, cercada, após o afundamento do socialismo na Europa.
Como lembrou Fidel, não serão necessários nem cavalos, nem
carros blinados, nem mangueiras de água para combater a
violência. Ela não vem do povo, que é a sua primeira vítima.
A Revolução não teria resistido durante 40 anos à guerra que
lhe move o imperialismo norte-americano sem o apoio da imensa
maioria do povo.
«A Revolução não se manteve pela força das armas; manteve-se
e mantém-se pela força das ideias, pela justeza da sua causa».
E foi, mais uma vez, para a defender que Fidel dirigiu à
Polícia e ao país este discurso corajoso, de tons quase
dramáticos - um discurso que o povo cubano esperava e desejava
ouvir.
____
As «novas» medidas de Clinton
O ano que findou
será recordado no Continente Americano como um tempo de grandes
êxitos para a diplomacia cubana. Principiou com a visita do Papa
e a condenação em Havana por João Paulo II do bloqueio e do
neoliberalismo.
Ao longo dos meses sucederam-se as visitas oficiais à capital
cubana de altas personalidades internacionais, desde o
primeiro-ministro do Canadá a governantes da Europa, da África
e da Ásia.
Cuba foi admitida como membro de importantes organizações
internacionais. Mantém hoje relações diplomáticas a nível de
embaixada com a quase totalidade dos países da América Latina e
do Caribe, rompendo a excomunhão de Washington. Havana passou a
ser uma das capitais do Terceiro Mundo onde se realizam mais
congressos e reuniões internacionais.
Os EUA sofreram quase simultaneamente em 98 duas derrotas
humilhantes: a condenação do bloqueio (apenas Israel acompanhou
Washington) pela Assembleia Geral das Nações Unidas e a
rejeição pela Comissão dos Direitos Humanos, em Genebra, do
texto norte-americano que visava colocar Cuba no banco dos réus.
Fidel Castro obteve um inegável êxito pessoal na Cimeira do
Porto e, em Outubro próximo, Havana será a sede da reunião
ibero-latino-americana de chefes de Estado e de Governo.
Perante a falência transparente da agressiva estratégia
anticubana da Administração e do Congresso, multiplicam-se nos
EUA os apelos no sentido de uma revisão dessa política. Entre
aqueles que se somaram ao pedido de formação de uma comissão
bipartidária que estude os resultados da política do bloqueio e
proponha a sua revisão incluem-se quatro ex-secretários de
Estado (entre os quais o próprio Kissinger) e mais de duas
dezenas de senadores, a maioria republicanos.
O Presidente dos EUA não podia permanecer mudo e quieto
sobretudo num momento em que a sua imagem é ensombrecida pelos
escândalos da sua vida privada. Era preciso fazer alguma coisa.
E Clinton fez. No dia 5 de Janeiro p.p. a Casa Branca tornou
público, com grande estardalhaço noticioso, um conjunto de
medidas que, segundo as cadeias de televisão e os grandes
jornais apontariam no sentido de uma suavização do bloqueio.
Os factos desmentem, porém, essa conclusão. Na realidade as
novas medidas que regulamentam, alteram ou repetem as de Março
do ano passado não somente não atenuaram a política do cerco a
Cuba, como em alguns casos agravam os seus aspectos mais
negativos.
Ricardo Alarcón, o presidente da Assembleia Nacional do Poder
Popular, ao comparecer na TV Cubana pôs os pontos nos ii. Deixou
em primeiro lugar bem claro que a mais recente iniciativa de
Clinton está orientada para um endurecimento da política até
agora seguida, nomeadamente no que diz respeito ao incentivo a
actividades contra-revolucionárias no interior de Cuba.
Alarcón esclareceu que os compromissos assumidos em l998 não
foram honrados. Houve um atraso enorme no estabelecimento dos
voos charters então autorizados. Outro exemplo: a Casa Branca
comprometera-se a facilitar a ajuda alimentar e a venda de
medicamentos. Na realidade todos os pedidos de licença de
laboratórios norte-americanos para qualquer transação
comercial com Cuba foram indeferidos. O ano findou sem que um
simples tubo de aspirina pudesse ser exportado para a Ilha. A
irracionalidade atingiu tais extremos que empresários da
indústria farmaceutica que pretendiam assistir a uma
feira-exposição do sector em Havana não obtiveram
autorização para viajar.
Mais absurdo ainda: cidados norte-americanos foram presos nos EUA
por fumarem em público charutos cubanos...
Um porta voz da Casa Branca informou em Conferência de Imprensa
que o apelo para a criação da tão falada comissão
bi-partidária não foi atendido. Quanto à também tão falada
ajuda material ao povo cubano, trata-se de uma grosseira
mistificação. As verbas aprovadas somente poderiam ser
utilizadas por fundações e ONGs norte-americanas com fins
ostensivamente contra-revolucionários.
Estamos, portanto, perante uma farsa, porque o Governo Cubano em
hipótese alguma permitiria transferências, pela via legal,
destinadas ao financiamento de actividades desse tipo. Não
haverá também alteração no tecto da quota de divisas
autorizada para familiares de emigrantes residentes nos EUA, nem
tampouco estabelecimento de voos regulares para a Ilha. A
montanha de promessas, afinal, pariu um rato morto.
O apoio manifestado às «novas medidas» pelos dirigentes da
Mafia de Miami e pelos senadores Jesse Helms e Torricelli, da
ultra-direita do Partido Republicano, é, por si só, elucidativo
do tipo de flexibilização que a Casa Branca desejaria imprimir
às relações com Cuba. Toda essa gente recebeu com satisfação
a iniciativa da Administração, definindo-a como positiva.
Como era natural, o povo cubano reagiu com indignação à
manobra mistificadora. Não se deixou enganar. O «novo» é
velho: a tentativa de relançar a ofensiva político-ideológica
contra Cuba.
O Presidente Bill Clinton, mais uma vez, esteve à altura da sua
reputação.