TRIBUNA
Sobre comunismo hormonal
e outros

Por Sérgio Ribeiro


Há quem não compreenda como se possa ser comunista hoje. Alguns desses nunca compreenderam como era possível ser-se comunista, ou só o compreendiam a partir de critérios muito seus que eram a negação da compreensão do que é ser comunista; outros foram mudando eles próprios para chegarem a esta irredutível incompreensão. Não devemos ter a ilusão de que lhes possamos explicar porque é que somos comunistas, mas devemos, talvez, aceitar este desafio, que de outros vem, para nos lembrarmos e avivarmos porque é que somos comunistas.

Aproximam-se eleições e repete-se, em relação ao Partido Comunista, uma manobra que já bem conhecemos e a que temos vindo a resistir. Embora, por vezes, com rombos na embarcação.
O PS torna-se na «grande esquerda», abrangente, paternal, acolhedora, e (re)aparece uma «pequena esquerda» cheia de projectos e de vitalidade. Completam-se as duas dinâmicas na busca de nos diminuírem o espaço. Ou por nos quererem apagar por via de absorção no que se apresenta como grande, abrangente, acolhedor, ou por nos quererem diluir no que não teria dimensão nem voz activa mas seria o tal desejado som de grilo para não deixar adormecer completamente as consciências.
É a altura de aparecerem a juntar-se à «grande esquerda», com a máquina mediática a funcionar na máxima força, os «ex», os que foram silenciados e ignorados e caluniados quando, a critério dos condutores daquela máquina, lhes pareciam comunistas impenitentes, e que ganham estatuto de estrela, por vezes cadente tal a vertiginosa passagem que fazem, quando é oportuno publicitar que o deixaram de ser, do Partido. Estrelato ou protagonismo a que também são promovidos camaradas que suspeitem estar, dentro do Partido, em fricção ou em processo susceptível de centrifugação.
É este também o momento de aparecerem, com menor mas ainda assim apreciável impacto mediático, as «novas esquerdas», algumas já muito velhas e experientes nesse serviço de serem a «esquerda oportuna» que, feitas as contas, vem tirar força à esquerda. Com iniciativa ou apadrinhamento de personalidades e inteligências (de personagens inteligentes ou de inteligentes personagens, todos/as muito independentes...) que não perdem o burilado discurso de esquerda compatibilizado com uma exemplar, e desde logo contraditória por tão individualista, convivência e cumplicidade com o poder, ou os poderes, da direita e da «grande esquerda».

Exemplifique-se

É bem verdade que quem não tem cão caça com gato e, sem conotação qualitativa mas temporal, dir-se-ia que se hoje não há dissidentes do Partido vão-se repescar os de ontem, até porque assim talvez se contribua para que, daqui a pouco, se verifique a dissidência de alguns que se anda a tentar, por meios encantatórios, para que dissidentes sejam.
Como temos de reconhecer, estas manobras são de ida e volta. Não somos, o Partido, um grupo fechado a influências. Somos um colectivo de mulheres e homens, nem melhores nem piores que os outros homens e mulheres - embora tenhamos de ser diferentes, como gosto de ouvir e de dizer...-, pelo que temos os nossos problemas «cá por casa» e somos permeáveis ao que, de fora, nos é atirado para dentro dos muros.
Um dia, já lá vão dez anos, escrevi a um então camarada uma carta de que me não esqueci, embora ele a deva ter, decerto, junto a outros papeis e memórias que estava a enviar para o lixo. Sem grande esperança de ser lido, escrevia-lhe que, sendo ele brilhante, os adversários políticos, na impossibilidade de lhe apagarem o brilhantismo com que defendia as suas/nossas posições, o estavam a adular, lhe faziam um cerco em que ele se comprazia. Terminava a carta com uma talvez abusiva e certamente tardia advertência: de tão brilhante, fizeram-te vedeta, como vedeta és instrumento, vê lá onde é que vais parar...
Por «lá» pára, numa apagada e baça tristeza!

Não se trata
de uma camisa
ou de uma farda

Houve quem escrevesse que ser comunista na juventude é tão natural como ser social-democrata na idade madura e conservador na velhice. Assim terá sido e será para muitos, numa discutível analogia com o processo bio/etário.
Mas também há, como respondeu o «nosso Nobel» ao sr. Pivot da televisão francesa, uma espécie de comunismo hormonal. Não se seria comunista por inocente vontade de mudar o mundo nos ardores da juventude, ou por cálculo, ou por referências historicamente conjunturais, mas por nos ter entrado na massa do sangue uma impossibilidade de aceitar o mundo como está e porque, tendo de viver nele - e fazendo-o com toda a alegria e assumida única oportunidade de vivo ser -, sentir um imperativo de procurar fazer o mundo mais justo socialmente, mais humano. Como poderia ter escrito menos injusto socialmente, menos desumano.
Esse imperativo lançado no sangue e no cérebro por via hormonal, faz com que ser comunista seja, também, ter adoptado uma concepção de vida, uma forma de estar e de actuar, um quadro de referências. É curioso ter transcrito esta frase de um dos muitos comentários que se servem de declarações do sr. eng. Veiga de Oliveira, nóvel militante socialista - e proveito lhe faça, e tranquilidade lhe dê -, para engrossar o coro mediático e demonstrar a tal incompreensão (inocente ou não) sobre o que é ser comunista.
Escrevia esse comentador que a corajosa decisão (própria da agora descoberta «qualidade pessoal» do sr. eng. que ministro foi, não só de Vasco Gonçalves, como se diz para dar maior realce subliminar ao seu luto, nojo de 10 anos e oportuno ressuscitar, mas também de Pinheiro de Azevedo pois foi-o dos IV e VI governos provisórios) se justificava, como acto de «humilde dignidade», porque «(com a queda do muro e correlativos) foi toda uma concepção de vida, uma forma de estar e de actuar, um quadro de referências que ruiu com estrondo».

Vamos por partes...

Os comunistas adoptaram um concepção de vida, uma forma de estar e de actuar, um quadro de referências. Quadro de referências que são os valores e princípios próprios dessa concepção e forma de estar e de actuar, e que são também - para o bem e para o mal - as lutas e experiências feitas em seu nome. Concepção de vida, forma de estar e de actuar que não podiam ruir ao ruir uma parte, e não a mais importante, do seu quadro de referências. Ponto final.
Quem era comunista por o seu exclusivo ou dominante quadro de referências ser o que se estava a tentar construir noutros lugares do mundo em nome dessa concepção de vida e dessa forma de estar e de actuar e, eventualmente também, a perspectiva de uma próxima tomada de poder à sombra desse quadro, naturalmente que deixou de ser comunista com a queda do muro de Berlim e tudo o que isso significou. Que não foi pouco!
A genial leitura que Marx faz do processo histórico, e do capitalismo em particular, a partir de contribuições várias e a ter de, evidentemente, ser permanentemente actualizada, continua uma interpretação do mundo que escora a vontade (e a obrigação) de ajudar a transformá-lo. Não devem, essas interpretação e vontade, ser os caboucos de um quadro de referências, de lutas e de experiências mas, sobretudo, de princípios e valores, de um quadro de referências para uma outra forma de estar e de actuar?
Aliás, ninguém terá chegado a comunista pelo simples facto de existir uma União Soviética. Chegou-se a comunista porque se sentiu na carne e nos ossos as injustiças, porque, ao olhar à volta, se sentiu vontade de mudar e, depois, se reflectiu sobre o modo de para tal contribuir. Por mim falo, que sou comunista por «culpa» do povo português (e de todos os povos do mundo) e do tal senhor Marx e seus companheiros do Manifesto, do manifesto de há 150 anos e de hoje.

Não se contribua para confusões...

O capitalismo não é o fim da humanidade. Não o esqueceu Veiga de Oliveira (e honra lhe seja feita). Mas não se contribui para que a humanidade passe a uma outra etapa escamoteando as contradições do capitalismo e ajudando-o a superá-las precariamente, como não é procurando acordos que nos façam - também a nós - esquecer ou desvalorizar o sistema de relações sociais que Marx sistematizou e denunciou e são a causa das injustiças e da desumanidade. E deve sublinhar-se que, quando a realidade impõe o regresso ao pensamento e às análises de Marx, seria incompreensível que fossemos nós a abandoná-lo para ganhar uma qualquer capacidade negocial.
Quando, ao inaugurar-se, a AD se «traveste» de social, quase a merecer o m-l que caracterizou certos grupos nos idos tempos em que todos e tudo era, no mínimo, social e socialista, uma das nossas preocupações maiores deve ser a de não nos deixarmos diluir na amálgama que tudo confunde entre a direita que só fala em reformas e pensões, a «grande esquerda» do diálogo, também daquela espécie de diálogo social que serve para adiar as inevitáveis lutas sociais, e as «pequenas esquerdas» das aparições e discurso intermitentes e inconsequentes, por vezes muito radical, por vezes nem por isso.
Estaremos, quem assim pensa, à procura de manter ou chegar a uma pureza (bacteriológica ou outra)?, da pureza que nunca estimámos ou aspirámos ter? Recuso o expediente simplista da arranjar simetrias que se anulem, que nada têm a ver com luta de contrários e que não ajudam ao debate fraterno por mais aceso que possa ser.
Talvez como em poucos outros momentos históricos, há que ser afirmativo e pedagógico, sem cedências no quadro de referências de princípios e valores. Só assim manteremos a nossa identidade e os outros nos levarão a sério. Os outros partidos, particularmente aqueles com quem sempre devemos estar abertos para relações de respeito mútuo e batalhas comuns, e, sobretudo, os trabalhadores e o povo. Que são a nossa força e razão de ser.


«Avante!» Nº 1314 - 4.Fevereiro.1999