XI Congresso do PS
O «big show» do «guterrismo»


Vai o PS, no próximo fim de semana, abandonar o modelo das «Convenções Nacionais» e fazer o seu primeiro Congresso na era Guterres. As novidades serão poucas, o conteúdo manter-se-á quase exclusivamente instrumental e o estilo será de hiperpersonalização e espectáculo. No fundo, este XI Congresso é o desenvolvimento (previsível) das manipulações estatutárias e expedientes politiqueiros que caracterizam o controlo «guterrista» sobre o PS e o corolário (inevitável) das políticas prosseguidas.

Foi em Fevereiro de 1992, já lá vão sete anos, que o X Congresso do PS, por quase 70% de votos, elegeu Guterres para secretário geral e deu à respectiva lista para a Comissão Nacional 61,7% do apoio dos delegados, contra 36,7% da lista de Jorge Sampaio.
Na altura, quatro meses depois da segunda maioria absoluta «cavaquista» e em período de nojo do PS, vários comentadores, de forma simplista ou com subtilezas de análise, caracterizaram o congresso com o eufemismo de «viragem ao centro».

Manipulação estatutária

A «conspiração interna» de Guterres, habilmente conduzida, e que se consumou na derrota de Sampaio no congresso, contou com a cobertura de certos círculos ocultos de poder e teve expressão na convergência com os «soaristas» de «primeira» e «segunda geração», já então, entre outros, Manuel Alegre e João Soares.
Uma das primeiras medidas internas da nova direcção, implementada logo em Junho de 92 na 2ª Convenção Nacional, foi a alteração dos estatutos, que Guterres se recusara a discutir no congresso quatro meses antes.
Os Estatutos então aprovados sujeitaram o PS tradicional ao estrito controlo do «guterrismo», houve na altura quem falasse de «estalinismo» e de «espoliação da democracia».
Deixou de haver congressos, substituídos por convenções nacionais a que competia apenas «debater programas e questões políticas».
A Comissão Nacional de cerca de 250 dirigentes, eleita num sistema complicado de círculos distritais, na dependência duma candidatura a secretário geral e da sua proposta duma quota nacional, passou a ser o «órgão deliberativo máximo», com poder para eleger todos os outros órgãos dirigentes e aprovar a Declaração de Princípios, o Programa e os Estatutos do PS.
De então até hoje, e está em curso a terceira eleição de órgãos directivos desde 1992, não voltou a haver listas alternativas à de Guterres para a Comissão Nacional, nem qualquer outro candidato a secretário geral.
As lutas internas pelo poder passaram a ser geridas pelos «guterristas» e pela integração nas respectivas listas. Assim aconteceu em 94, já na preparação das legislativas de 95, quando entraram «sampaístas» e «gamistas» e se alargou o Secretariado, ou em 96, com novo alargamento deste órgão e a criação da sua Comissão Permanente, ou, como agora se anuncia, com a entrada dos «plataformistas» e das «quotas» de mulheres.
Em Maio de 96, na 6ª Convenção, a direcção «guterrista» reconheceu o «menor sucesso mediático», que não o «déficit democrático», do modelo estatutário das convenções e prometeu alterar os estatutos para voltar aos congressos.
Em Março de 98, com a "oposição interna" em parte incerta, o poder e a gestão instrumental dos «jobs» seguros e garantidos, Guterres e o seu «núcleo duro» decidiram abrandar um pouco a sua tutela do PS e aprovar novos estatutos conformes aos seus objectivos.
Tinham constatado, após várias reprises pífias e adiamentos sine die, não haver condições nem figurantes para nova encenação dos «Estados Gerais», assim resolveram que o congresso seria um grande espectáculo em ano de eleições.
Pelos novos estatutos, o congresso recupera parte do poder perdido em 92, como a eleição da Comissão Nacional e outros órgãos e a aprovação dos documentos fundamentais, enquanto o secretário geral, eleito pelos militantes antes do congresso, reforça a sua tutela pessoal de todo o sistema e a Comissão Nacional regressa às suas competências originais.
É esta a receita do «guterrismo» para, mantendo o poder bem seguro, dar da democracia interna uma imagem q.b. e optimizar a espectacularidade do congresso numa fase decisiva da pré-campanha eleitoral.

A política e as politiquices

A política do PS, no que é mais fundamental e decisivo, está caracterizada pelos olheiros mais insuspeitos - diversos dos seus agentes e aproveitadores - como a continuação da do PSD. Não há razão para os desmentir, antes lembrá-lo quando o procurarem escamotear para encenar pseudo diferenças.
Este é um governo de procuração dos grandes interesses, que tem como orientação o serviço aos «mercados» e executa nas políticas essenciais os respectivos dogmas. Aí pontificam os seus sacerdotes e «cristãos novos» de que todos os dias se verificam os serviços a este ou aquele grupo em particular.
Aliás, talvez para isso tenham rolado as cabeças de dois ministros da Economia até à «estabilidade» de Bicesse em que vivemos.
Este Governo, como agora se diz, «vampiriza» a direita, retira-lhe as causas e os apoios-chave, incluindo os da hierarquia católica mais conservadora, que Guterres provou servir com eficácia contra o próprio PS.
Só quando o Governo PS/Guterres não consegue travar as movimentações populares, ou quando, constrangidos pela relatividade da sua maioria, são obrigados a votar com o PCP, é que acontece uma ou outra medida aceitável.
O resto pouco mais são que expedientes politiqueiros e marketing político, em muitos casos herdados do «cavaquismo» e de Edson Athayde.
Por exemplo, a gestão «científica» de «jobs» e clientelas, lobbies e círculos ocultos, pelos diversos níveis do poder, criando um enorme pântano de interesses, uma espécie de corporação de tachos, capelinhas e (bons) negócios, sustentada pelos dinheiros de todos nós.
Ou o papel instrumental dos independentes de diversas origens, forjando a imagem de «abertura» do Governo, mesmo quando, e é o caso da «plataforma», são só mais um grupo do PS que faz render o aliciamento orientado.
Ou a imagem do «chefe» com os seus atributos de encomenda, «dialogante», «prudente», «inteligente» e distanciado das guerras do partido, mas sem ele seria o «caos» (de Cavaco), numa qualquer versão soft.
Ou ainda os factos políticos e «tabus», como os de Mário Soares ou Guterres para a Europa, que valendo coisa nenhuma para os interesses reais dos portugueses, visam condicionar a «agenda política» e alterar as regras do jogo a favor da equipa do Governo.

O "big show" Guterres

Este é um congresso instrumental, um megacomício pré-eleitoral, que decorre no tempo certo conforme estes objectivos e não, nem agora, nem em nenhuma das datas previstas neste ano de atraso, para discutir algo de essencial.
Guterres, secretário geral já eleito com 96,65% de votos(!), é o promotor da única moção de orientação global, que como tal pode ser votada em congresso e de que se diz «evitar as polémicas» e ser «politicamente neutra».
As outras moções são todas «sectoriais» e a única que é projectada como pretensamente alternativa, a de Manuel Alegre, embora cheia de sábias palavras contra a «diluição ideológica» ou a «governamentalização do PS» e em favor do «Estado providência» e do «diálogo no seio da esquerda», não assume a crítica às opções essenciais prosseguidas, nem sequer à revisão constitucional ou às derrotas impostas por Guterres ao PS nos referendos, e não formula uma proposta que seja que confronte a moção oficial de Guterres/Vitorino.
Não admira que assim seja, Alegre é membro do actual e certamente do futuro Secretariado de Guterres e, segundo reza a imprensa do fim de semana, reviu e alterou a sua moção com o próprio secretário geral. Ainda vão acabar todos a votar as moções uns dos outros, como já deixou entender Jorge Coelho.
Sem Alegre e mais uns poucos, o XI Congresso do PS seria um acto litúrgico de auto-glorificação, um simples desfile de titulares e candidatos à «classe política».
Alegre vai ter neste congresso o papel de animador à esquerda, o compère dos dignitários do «guterrismo», certamente com cobertura televisiva directa. Será o atestado da «consciência tranquila» do PS e, prosaicamente, a peninha no chapéu congressual do «guterrismo».
De resto será o «big show» de Guterres, com dois ou três momentos de «suspense», como convém nestas coisas.
Será que Guterres vai optar por um «número dois»? E será o ministro Coelho, recém chegado à reflexão filosófica, ou o «porta voz» Vitorino, recém chegado de Macau, como noutras vezes à beira de eleições?
E como será que vão resolver as quotas das mulheres? Alteram ou não os novos Estatutos? Será desta que a Comissão Nacional chega aos 300?
Enfim, só magnos problemas que muito interessam ao país e ainda mais aos «boys and girls» dos «jobs» do situacionismo.
E chega finalmente o último dos discursos, o «grande final» de Guterres, domingo em directo, em todos os canais e no horário nobre, e dirá solenemente: «Queremos uma maioria inequívoca, porque, a não ser assim, será a instabilidade e muitas outras desgraças», ou dirá antes: «Queremos uma maioria absoluta pelas mesmíssimas razões»?
«Enormíssima dúvida» esta de não saber como vai o «guterrismo» perder a vergonha a este respeito.
Talvez por isso, ou por algum resto de solidariedade democrática com os socialistas, ocorre-nos que vale a pena, inequivocamente, salvar o PS da maioria absoluta. — Carlos Gonçalves


«Avante!» Nº 1314 - 4.Fevereiro.1999