Somente a globalização socialista
poderá evitar o fim da civilização

— afirmou Fidel Castro na Conferência de Havana

Por Miguel Urbano Rodrigues


Em Havana, um plenário incomum reuniu-se de 22 a 25 de Janeiro para estudar e debater a globalização e problemas do desenvolvimento. Nesse Encontro com características inéditas participaram 600 destacados economistas estrangeiros vindos de 50 países, um punhado de personalidades eminentes e representantes de l6 organizações internacionais na maioria ligadas à ONU. O calendário e o ritmo assombraram os convidados especiais e os observadores. Durante cinco dias as jornadas de trabalho iniciadas pela manhã entraram noite adentro.
Fidel Castro, que presidiu, lançou ao mundo um alerta: ou a humanidade encontra rapidamente respostas adequadas para a envolvente crise económica e social e de civilização que a ameaça ou se afunda numa catástrofe apocalíptica.

Seria lógico que um acontecimento de tão extraordinário significado tivesse merecido atenção prioritária dos grandes media internacionais. Não foi, porém, o que ocorreu. As grandes cadeias de televisão e os principais jornais do Ocidente industrializado ignoraram o Encontro de Havana. A Conferência foi deliberadamente sabotada. Os debates sobre a Globalização eram à partida muito incómodos para poderes que erigiram o neoliberalismo em religião.
Nos seus reduzidos serviços sobre o acontecimento, as agências noticiosas privilegiaram, aliás, as intervenções em que os representantes do BIRD e do Banco Mundial fizeram em Havana a apologia da globalização neoliberal.
Das 140 comunicações enviadas aos organizadores - a Associação Nacional dos Economistas de Cuba e a Associação dos Economistas da América Latina e do Caribe - foram seleccionadas 54 para apresentação no plenário pelos autores.
Além dos quatro idiomas oficiais - o espanhol, o inglês, o francês e o português - falou-se em alemão, em italiano e em chinês...
Não foi pronunciada uma palavra agressiva; a polémica permaneceu sempre no terreno das ideias. A atmosfera de respeito pelo outro não impediu que as divergências e os antagonismos entre as posições sustentadas emergissem com nitidez. Esse era o objectivo. Para uns a globalização neoliberal carrega perigos enormes para a humanidade; para outros - a minoria - aparece quase como uma benção.
Entre os estrangeiros predominavam largamente neoliberais, keynesianos, neokeynesianos, estruturalistas e neoestruturalistas. Como os cubanos pretendiam ouvir, apenas foi apresentada uma comunicação sua, a de Osvaldo Martinez.

Entre o realismo
e a utopia

A atmosfera, sentiu-se, foi moldada pelo próprio conteúdo das intervenções durante os debates. Pouco a pouco subiu das palavras a rejeição do modelo que está a ser imposto à humanidade. O discurso foi, felizmente, muito diversificado. Oscilou entre o realismo e a utopia.
A crise brasileira, em pleno desenvolvimento, esteve, naturalmente, no fulcro dos debates. Numa das sessões, Fidel leu excertos dos textos das agências noticiosas.
Do Brasil chegavam notícias que corriam pelas bancadas do Palácio das Convenções. Na manhã de 22 soube-se, por exemplo, que o Real se afundava. Cerca de 500 milhões de dólares estavam a sair do país diariamente numa hemorragia assustadora. Em duas semanas a moeda caíra de l,20 por dólar para l,75 em desvalorização galopante.
O euro foi tema de acalorados debates. Esperança ou ilusão? As duas posições encontraram defensores no plenário. O francês Paul Boccara, do PCF, recusou ambas para apontar como terceira solução, a moeda única universal, o que motivou uma réplica imediata do argentino Jorge Beinstein, condensada numa pergunta realista: «Quem vai administrar essa moeda ? Moeda é poder!»
A solidariedade chegou de todos os azimutes do planeta. Esteve presente na voz de Danielle Mitterrand, em comparências como a do general Vasco Gonçalves, em apelos ao internacionalismo militante como o do italiano Fausto Bertinotti, da Rifondazione Comunista Italiana.
Dois momentos particularmente emocionantes: as intervenções do brasileiro Lula e do nicaraguense Daniel Ortega. O primeiro trouxe à Conferência o sofrimento do povo brasileiro e a sua confiança no futuro; com o segundo subiu nas consciências a memória da epopeia sandinista, a repulsa pela agressão imperial norte-americana, mas também a amargura inseparável dos erros de uma revolução mal defendida.
Permanentemente, a opinião foi completada pela informação. Alguns números, esquecidos pelos media, assustam. Três multimilionários possuem fortunas que excedem o PIB, somado, de 48 países do Terceiro Mundo. Foi revelado que mais de 40% da população dos EUA está comprometida com a especulação bolsista. Muita gente tem dificuldade em entender o funcionamento tortuoso dos mecanismos do mercado sacralizado. Custa a perceber também, como um país com um nível tão baixo de poupança como os EUA tenha conseguido gradualmente construir uma situação que lhe permitiu impor o dólar como moeda de reserva universal. Por outras palavras: uma situação que faz da República norte-americana uma nação parasita.
Na maratona que foi a Conferência não houve sessões monótonas. Mas alguns temas, como era inevitável, suscitaram debates seguidos com um interesse especial. Por exemplo, as intervenções sobre o conceito e o funcionamento da globalização. Os latino-americanos insistiram muito na unidade. Sem que os povos do Continente, do México à Terra do Fogo, construam estruturas que facilitem a integração real, a sua luta contra a dominação imperial, económica e política, não poderá atingir o objectivo. Falou-se, por isso, muito do Merco Sul, da ALAI, da integração do Caribe. O aprofundamento e a clarificação das relações entre a União Europeia e os países da América Latina subiram com frequência ao debate, umas vezes com realismo, outras com tratamento romântico.

A palavra aos neoliberais

Os promotores da Conferência convidaram múltiplas organizações das Nações Unidas, assim como todos os galardoados com o Prémio Nobel de Economia e os principais jornais e revistas financeiras do mundo. Até o super especulador George Soros recebeu convite para se deslocar a Havana. Dessa constelação de estrelas a maioria não compareceu. O FMI nem sequer respondeu, ao contrário de Soros que lamentou a impossibilidade de estar presente.
Dos membros da cúpula neoliberal que estiveram no Encontro de Havana dois polarizaram o interesse do plenário: o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Os altos funcionários que representaram ambas as instituições apresentaram comunicações que suscitaram alguns dos debates mais interessantes e participados.
Ambos, obviamente, assumiram a defesa da globalização neoliberal. Utilizaram, entretanto, discursos diferentes, muito mais cauteloso o do Banco Mundial. Um desses senhores confidenciou, sorrindo, que se sentia como «cordeiro entre lobos»; o outro evocou um circo romano para expressar o seu estado de espírito.
Falando pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, Eduardo Lora não hesitou em fazer a apologia dos benefícios das políticas neoliberais, apresentando os erros e as sequelas negativas como acidentes de percurso. Sofista até ao exagero, foi buscar, a despropósito, a China como exemplo de um modelo de desenvolvimento equilibrado e seguro, não obstante o distanciamento ideológico do neoliberalismo.
Ouviu das boas. Um brasileiro de Santa Catarina, professor de Economia, trouxe para o anfiteatro o filme das consequências das políticas de ajuste do FMI: fome, desemprego, destruição da Segurança Social (onde existia algo merecedor desse nome), desindustrialização, privatizações selvagens, reforço da dependência, especulação desenfreada, corrupção endémica, aumento das dívidas interna e externa, aprofundamento do fosso entre ricos e pobres, etc.
O representante do Banco Mundial, Andres Solimano, um chileno com maneiras aristocráticas, utilizou uma táctica mais defensiva. Admitiu erros como preço inevitável do que para ele é uma etapa no progresso da humanidade: Nas respostas comentou em pormenor o acessório e esqueceu as críticas de fundo à sua exposição.
Fidel interveio para lhe desmontar o paternalismo. Começou por se dirigir ao «doutor» do Banco Mundial, mas quase logo, no seu estilo, passou ao tu. Agradeceu-lhe a presença e lembrou-lhe que não havia motivos para se sentir encurralado, pois ali todos podiam defender qualquer posição ou ideologia sem restrição alguma. Fez-lhe perguntas sobre a acção do Banco Mundial e as suas reais intenções no tocante ao Terceiro Mundo. Correspondia a prática ao discurso filantrópico dos dirigentes? Lamentou também a ausência do FMI e de Soros. Não deveria estranhar a péssima imagem do FMI naquele Encontro. Para ser mais claro leu um despacho da France Presse que reproduzia uma declaração feita ao diário argentino Página 12 por Milton Friedman, o Prémio Nobel de Economia, chefe da Escola de Chicago. Nela o inspirador da estratégia financeira de Pinochet e da política monetarista de Margaret Thatcher dizia textualmente: «o FMI deveria ser abolido porque faz mais mal do que bem à economia mundial». Informou então que Friedman enviara uma mensagem lamentando que compromissos assumidos o impediam de se deslocar a Havana. Sem comentário...
Finalmente, Fidel perguntou ao representante do Banco Mundial se havia estudado em Chicago. O jovem executivo informou que não, que não fora um chicago boy. Desarmado, perdeu a sobranceria e o fio do discurso; achou mesmo útil declarar que regressaria a Washington com muitas interrogações suscitadas pelo que ouvira durante o Encontro. E desceu da tribuna (o pódio) para ir respeitosamente cumprimentar Fidel, num gesto que rompeu o protocolo.
O episódio é definidor da atmosfera especialíssima desta Conferência, que em determinados momentos fez lembrar o palco de um teatro shakespeareano.

Diversidade enriquecedora

Desde as comunicações académicas à intervenção política, passando pelo discurso ecológico e a reflexão filosófica sobre o neoliberalismo - o desfile pela tribuna foi de uma diversidade que enriqueceu os debates, evitando que a monotonia se instalasse no anfiteatro.
O francês Henri Alleg avivou a consciência dos participantes ao iluminar a tragédia que devasta a Rússia, vandalizada pela agressividade do neoliberalismo mais primário. O brasileiro Frei Beto (que no dizer de Fidel o força a comentar a Bíblia quando ele se lança no terreno da política) fez vibrar o plenário com a sua oratória humanista e revolucionária. O mexicano Arturo Huerta conseguiu imprimir força e transparência ao inventário dos males das políticas neoliberais. Ao cubano Osvaldo Martinez coube esboçar numa síntese brilhante e didáctica o panorama da globalização neoliberal e da crise económica e de civilização que a humanidade enfrenta.
Não faltaram intervenções de gente amiga da revolução cubana vinda da Suécia, dos EUA, do Canadá, da Índia, da China. E, naturalmente, fez-se ouvir a voz da África e o clamor dorido dos povos indígenas da América.
Fidel comentou passagens de muitas intervenções. Por vezes interveio com o objectivo de evitar que a Conferência se tecnificasse, fechando-se em torno de temáticas da macro economia ou de inacessíveis subterrâneos da ciência financeira. Os debates que então suscitava reconduziam o rio da Conferência ao seu leito natural de que havia saído.
Na sua opinião «a primeira de todas as artes e ciências, a mais difícil, é a política, porque são os políticos que tratam de iluminar o caminho, apesar de serem tão ignorantes e medíocres, mas não há outro ofício para se procurar a solução, para encontrar utopias ou fórmulas reais».
Ao longo da Conferência, Fidel foi sempre um anfitrião cavalheiresco e bem humorado. Mas, quando lhe pareceu necessário, mudou o discurso para se dirigir ao mundo como revolucionário, inflexível na defesa dos princípios e valores do socialismo e na condenação da estratégia da globalização neoliberal e das suas consequências para a humanidade.
Vergastou repetidamente o imperialismo norte-americano como grande inimigo da humanidade. Cuba rejeita o governo mundial imposto de Washington pela força do dinheiro e das armas. O dirigente cubano rejeita a desumanização da vida, a política de destruição das culturas e da herança milenar do processo civilizatório. Não só repudia o governo mundial da República norte-americana como apela à unidade dos povos, a uma globalização da solidariedade que contribua para salvar o planeta da catástrofe para a qual avança a galope.
O Encontro de Havana findou com a leitura de um Documento síntese do que nele foi afirmado e debatido. Roberto Verrier, o presidente da Associação Nacional dos Economistas de Cuba e da Associação dos Economistas da América Latina e do Caribe, falando em nome de ambas, leu, depois, uma convocatória. Conscientes da extrema gravidade de uma crise económica iminente e generalizada, as duas associações informaram que ali mesmo se iniciava o esforço de promoção de um II Encontro sobre Globalização e problemas do desenvolvimento. Foi sugerido que economistas de todo o mundo voltem a reunir-se em Havana de 25 a 29 de Janeiro do ano 2000 para aprofundar e ampliar os estudos e propostas ora apresentados.
Coube a Fidel encerrar a Conferência. Quando tomou a palavra passava das onze e meia da noite. Muitos dos participantes esperavam que falasse durante umas duas horas.
Surpreendeu o plenário. Informou que não iria proferir um discurso. Chegara à conclusão de que seria mais útil apresentar uma comunicação à Conferência, sob a forma de um diálogo consigo próprio. E seria uma comunicação quase telegráfica. Falou apenas durante 14 minutos.
Quando terminou veio-me à memória a sua intervenção numa Conferência dos Não-Alinhados em Nova Deli, há mais de l5 anos. Num discurso de conteúdo patético advertiu então a humanidade de que a dívida do Terceiro Mundo, crescendo como tumor maligno, não poderia ser paga e que iria converter-se num factor de agravamento das tensões mundiais. Esse discurso pioneiro atingiu o objectivo. Ficou a assinalar o início de um debate mundial sobre a irracionalidade das políticas que contribuíam para inchar monstruosamente a dívida dos países pobres aos países ricos, acelerando em vez de reduzir a drenagem das riquezas do Terceiro Mundo para os Estados industrializados.
Esta Conferência de Havana ficará, tudo o indica, como o marco da arrancada para uma tomada de consciência das consequências perigosíssimas de políticas inseparáveis de uma estratégia de domínio mundial - a ameaça de uma globalização capitalista que coloca em causa, pela sua irracionalidade, a própria continuidade da aventura humana na Terra.

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As perguntas de Fidel
e as suas respostas

Enquanto se procedia à leitura do Documento final da Conferência, Fidel Castro tomava notas. Percebeu-se, depois, que redigia aquilo a que chamou a sua comunicação telegráfica aos participantes no Encontro.
Dessa breve intervenção, um conjunto encadeado de perguntas e respostas, reproduzimos a parte final:

A incrível e inédita globalização de que nos ocupamos é um produto do desenvolvimento histórico, um fruto da civilização humana; foi alcançada num período brevíssimo não superior a três mil anos, na longa vida dos nossos antepassados sobre o planeta. Eram já uma espécie totalmente evoluída. O homem actual não é mais inteligente do que Pericles, Platão ou Aristóteles, embora ainda não se saiba se é suficientemente inteligente para resolver os problemas de hoje, extremamente complexos. Estamos apostando em que poderá consegui-lo. Disso se ocupou a nossa reunião.
Uma pergunta: trata-se de um processo reversível? A minha resposta, aquela que dou a mim mesmo, é não.
Que tipo de globalização temos hoje? Uma globalização neoliberal; assim a chamamos muitos de nós. É sustentável? Não. Poderá subsistir por muito tempo? Absolutamente não. Questão de séculos? Categoricamente não. Durará somente décadas? Sim, apenas décadas. Mas, mais cedo do que tarde, terá de deixar de existir.
Porventura acredito ser uma espécie de profeta ou adivinho? Não. Sei muito de economia? Não, quase nada. Para afirmar o que disse basta saber somar, diminuir, multiplicar e dividir. Isso até as crianças aprendem na escola primária.
O que vai gerar a transição? Não sabemos. Será através de amplas revoluções violentas e grandes guerras? Parece improvável, irracional e suicida. Através de profundas e catastróficas crises? Infelizmente é o mais provável, quase inevitável, e concretizar-se-á mediante diferentes vias e formas de luta.
Que tipo de globalização será? Não poderia ser outra senão socialista, comunista, ou como queirais chamar-lhe.
Dispõe a natureza de muito tempo, e com ela a espécie humana para sobreviver à ausência de uma mudança similar? De muito pouco. Quem serão os criadores desse novo mundo? Os homens e mulheres do nosso planeta. Quais serão as armas essenciais? As ideias, as consciências? Quem as semeará, cultivará e as tornará invencíveis? Vós. Trata-se de uma utopia, de um sonho mais entre tantos outros? Não, porque é objectivamente inevitável e não existe alternativa. Já foi sonhado não há muito tempo, mas talvez prematuramente. Conforme disse o mais iluminado dos filhos desta Ilha, José Martí: «Os sonhos de hoje serão as realidades de amanhã».


«Avante!» Nº 1314 - 4.Fevereiro.1999