Fracassos de Blair…
Da terceira via
à sociedade sem classes

Por Manoel de Lencastre


Perante as reservas do país, tornou-se essencial preencher o vazio ideológico do «New Labour» em que milhões de britânicos deixaram de acreditar. O primeiro-ministro, assim, apresentou-se inspirado por aquilo a que chamou «a terceira via», uma nova política que se distanciasse dos «velhos» ideiais do socialismo «ultrapassado» sem que ele fosse visto ajoelhar diante dos estados-maiores do imperialismo. Ninguém acreditou na estafada proposta, velha de séculos. Os conservadores riram-se do primeiro-ministro e expuseram, uma vez mais, a sua falta de princípios. Toda a Grã-Bretanha lhe virou as costas.

Mas os porta-bandeiras do mais cinzento dos oportunismos, de que Mandelson é o melhor exemplo, tal como o representante pessoal do primeiro-ministro, Alastair Campbell, apressaram-se a preparar para Tony Blair uma nova proposta que atingisse em cheio a alma do país. E surgiram com uma nova ideia que Blair subscreveu no seu discurso de 15 de Janeiro – a de que todo o povo britânico se integra numa vasta classe média, sendo o «New Labour» o partido que se expandiu no seio dessa classe. As reacções não se fizeram esperar porque basta penetrar o âmago do país viajando de comboio para poder perceber-se que o sistema de classes continua vivo e que a classe trabalhadora, aquela de que Blair foge e cuja existência nega, não só existe como empobreceu.
Assim, Derek Foster, deputado pelo círculo de Bishop Auckland e um dos mais antigos membros da Câmara dos Comuns, numa entrevista ao jornal «Sunday Sun», de Newcastle, declarou: «O primeiro-ministro anda a prostituir a tradição filosófica dos trabalhistas e partiu a linha comum que deveria unir-nos. O governo do "Novo Trabalhismo" não serviria para engraxar as botas àquele que a Grã-Bretanha elegeu em 1945 para levar Attlee ao n.º 10 de Downing Street. O senhor Blair, com a sua visão da classe média em expansão, prostituiu o papel histórico daqueles que fizeram o verdadeiro "Labour" no seio do movimento dos sindicatos britânicos.»

Começaram a chover cartas nas redacções dos jornais. Mesmo «The Daily Telegraph», o de mais profundas convicções conservadoras, recebeu algumas de leitores distantes dos ideais do trabalhismo mas que não desconhecem a realidade. Vejamos algumas delas:

De Mr. J.M.S. Vaux (Devon): «No seu discurso, o primeiro-ministro confundiu classe média com rendimento médio. A classe média distingue-se por uma certa disciplina, boas maneiras e algum conservadorismo com "c" pequeno, atributos que não são evidentes entre o número crescente dos que recebem e vivem de um rendimento médio. Mr. Blair deveria compreender que se fôssemos todos da classe média, ele e o seu "gang" jamais teriam conseguido chegar ao governo.»
De Mr. David E. Bonwick (East Sussex): «Se somos todos da classe média, qual a razão por que nos não é possível gozar férias de Inverno nas Ilhas Seychelles (custo: 12.000 contos) como fez Mr. Blair e a família?»
De Mr. Francis Mason (Norfolk): «Lembro-me de ouvir o meu pai dizer, há mais de 60 anos, que aqueles que discutem as classes sociais não pertencem a nenhuma.»
De Mr. Stephen Ellwood (Somerset): «Há qualquer coisa de errado no discurso do primeiro-ministro. Se todos pertencemos à classe média, então teriam deixado de existir a classe operária e a classe dirigente. Mas se estas duas classes já não existem também a classe média não pode existir.»
De Mr. Robert Kay (Herefordshire): «Mr. Blair, de um só golpe, alienou os milhões de cidadãos e votantes que acreditam, sinceramente, pertencer à classe trabalhadora. E alienou, também, muita gente da própria classe média. Só os poucos, como eu, que pertencem à classe burguesa e disso não se envergonham, não se sentiram afectados pelas palavras do primeiro-ministro. Mas esses são conservadores, votam sempre no partido "Tory" e nunca votariam em Tony Blair.»

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Ninguém acredita
no Primeiro--Ministro

Estamos a assistir aos primeiros actos de uma nova tragédia do Partido Trabalhista britânico. Agora, trata-se da derrocada, da queda ao abismo, do "New Labour" (novo trabalhismo) de Tony Blair, o primeiro-ministro que encanou o eleitorado e conseguiu satisfazer as suas ambições em 1 de Maio de 1997. Toda a Grã-Bretanha começa a abrir os olhos, finalmente, para a tragédia deste envangelista sem política definida, sem programa, sem ideias próprias. Blair, um jovem advogado "bonitinho" e de simpáticas maneiras, propusera-se transformar a vida britânica por meio de muitos sorrisos, gestos de boa vontade e rasoadas visões do futuro. Mas a realidade, essa implacável mestra da vida, está a mostrar-lhe sob formas diversas que os seus sonhos deixaram de corresponder aos imperativos e ao quotidiano de milhões de cidadãos e cidadãs.

O país e o mundo assistiram, perplexos, ao demoníaco papel deste primeiro-ministro "Labour" de quem se esperava só prosperidade e paz. Mas, colocando-se aberta e alegremente ao lado de Bill Clinton, mandou que voassem sobre os céus do Iraque os "tornadoes" assassinos e procurou, depois, projectar-se como defensor da democracia e "leader" da cruzada ocidental contra Saddam Hussein. Mas as listas de espera nos hospitais britânicos continuam, escandalosamente, a engrossar e o povo das Ilhas britânicas certifica-se que, afinal, o estrangulamento de que é vítima no centro do sistema do mercado, em vez de abrandar, intensifica-se. E pergunta-se: "Para que nos valeu votar em massa nos trabalhistas pela terceira vez desde o fim da Guerra?"

A demissão do todo poderoso ministro do Comércio, Peter Mandelson, o príncipe-negro do novo trabalhismo, já não surpreendeu. Sobre o seu estilo de vida circulavam histórias deprimentes e o empréstimo que obtivera de outro ministro amigo (mais de 100.000 contos), para comprar uma mansão em boa zona de Londres sem pagar impostos em relação ao capital pedido, correspondia, inteiramente, ao carácter do homem que abandonara os ideais do passado para abraçar os do capitalismo com a bandeira do "Novo Trabalhismo". Também não supreenderam outras demissões – a do "Pay master General", Geoffray Robinson, o homem que emprestara o dinheiro a Mandelson, e a do porta-voz da Tesouraria (ao serviço de Gordon Brown), Charles Whelan, um ex-comunista. Rico, na sua extraordinária experiência histórica, o povo britânico já compreendeu tudo. Ultrapassou as suas iniciais perplexidades e sabe que Tony Blair, no fim de contas, não passa de mais um primeiro-ministro "Labour" que preferiu viver segundo as "tradições" conservadoras e abandonou todas as promessas que fizera.

Clement Attlea, Harold Wilson, James Callaghan, foram os primeiros-ministros possíveis quando a Grã-Bretanha desejava, simplesmente, avançar. Blair, muito ao contrário, é o homem de quem o país exigia um total rompimento com o passado – não simplesmente, para poder avançar, mas com o objectivo de destruir, enfim, um país novo. Mas Blair, aconselhado por "spin-doctors" que dele fizeram uma espécie de apresentador publicitário e tinham vendido a alma ao capitalismo, acabou por encontrar-se isolado numa densa e negra floresta cuja saída não sabe e não deseja encontrar. Surge aos olhos do país como figura própria de certos dramas sangrentos que deixam no palco dúzias de corpos mortos e um único sobrevivente, ele que julgara poder impressionar o mundo.

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Festa em Newcastle

O que estava na moda em 1995 era o Newcastle United.
Trata-se de um grande clube de futebol, querido em todo o Nordeste de Inglaterra, um clube de profundas origens populares e operárias cujos futebolistas e adeptos possuíam matrícula comum – a da vida nos estaleiros, nas docas de ambas as margens do Tyne, nas minas de carvão do Northumberland. Mas o Newcastle foi comprado por Sir John Hall, um capitalista de grande sucesso a quem Margaret Thatcher garantira o título de «Sir». Este «businessman» era e é um homem singular. Costuma dizer-nos: «Português, já sabes que sou capitalista. Em tudo o que entro é para ganhar dinheiro.» Mas, depois, pensando melhor, remata: «Ficas a saber, porém, que nunca esqueci as minhas modestas origens.»
Visitantes habituais do famoso estádio de St. James Park eram Jack Straw, agora Secretário de Estado do Interior e da Justiça (Home Office), Jack Cunningham, hoje ministro a cargo do Gabinete (Cabinet Office Minister), e Enn Smith, agora «leader» da bancada trabalhista na Câmara dos Comuns. Já se sabia que após os emocionantes encontros de futebol que o campeonato de Inglaterra proporcionava, Sir John Hall e a esposa, Lady Hall, assim como os restantes dirigentes do Newcastle United, ofereciam lautos e deliciosos jantares inevitavelmente servidos com bons vinhos franceses e «champagne». Os convidados habituais eram os políticos trabalhistas de eleição garantida, dirigentes dos clubes adversários e jornalistas seleccionados entre os quais este correspondente do «Avante!» se encontrava e cujas simpatias marxistas Sir John conhecia.
Então, os políticos trabalhistas Straw e Cunningam atacavam o «champagne» e deliciavam-se nos aromas de largos havanos que em caixas originais lhes eram postos à disposição pelo pessoal ao serviço de Sir John. Mas este, observando bem aqueles que em breve chegariam ao poder não resistia perante as evidentes contradições à vista e perguntava-nos: «Estás a ver isto, português? E são eles trabalhistas…» Nós tentávamos esclarecer: «Não são trabalhistas, Sir John. Isso é só de nome. São capitalistas, ainda que com pouco ou nenhum capital. O seu papel tradicional é o de servirem os interesses do imperialismo.»
Estes nossos comentários faziam rir Sir John que trabalhara nas minas de carvão da região de Durham juntamente com Bobby Robson, o famoso treinador de futebol que exercera a profissão de electricista.
Apenas Ann Smith, cujos filhos viviam em Newcastle e regressava a Londres às segundas-feiras, de comboio, reservava as suas atitudes e não se deixava enfraquecer no delírio do fumo dos havanos ou nas delícias do "champagne". Só estava ali, em St. James’ Park, porque era deputada aos Comuns pela cidade de Newcastle e não podia recusar os convites de Sir John Hall.
Foi assim, também, que o "Novo Trabalhismo" inspirado por Blair, Mandelson, Campbell, Sawyer e muitos outros, prosperou e chegou ao governo. Mas, hoje, Sir John já se afastou do futebol tendo vendido, a uma televisão americana, por 150 milhões de libras, o clube que apenas lhe custara três, e Straw e Cunningham estão no poder em Whitehall. O que é verdade, porém, é que o "New Labour" prepara a sua própria destruição enquanto as multidões nordestinas de Inglaterra que amavam e sofriam com o seu clube de futebol sentem que foram afastadas do processo e não passam, agora, de simples clientes. Mas regressarão…


«Avante!» Nº 1314 - 4.Fevereiro.1999