A TALHE DE
FOICE
São
rosas...
Durante o seu já longo percurso político o deputado Manuel Alegre ganhou a fama - e o proveito - de ser uma voz incómoda e desassombrada. Seja porque lhe ganhou o hábito, seja para não perder o jeito, sempre que o coração lhe bate mais forte e mais à esquerda ele aí vem a público dizer de sua justiça, lembrando na generalidade dos casos o que outros, parceiros de muitas jornadas, já esqueceram na gaveta.
Em vésperas de
Congresso partidário, como seria de se esperar, o poeta voltou a
atacar, desta feita com uma moção que traz no próprio título
a sua 'marca de água': «Falar, É Preciso».
A temática, segundo as notícias vinda a lume, é diversificada.
Desde a proposta de reflexão ao papel da esquerda e à
necessidade de acrescentar mais esquerda à esquerda, passando
pela defesa do Serviço Nacional de Saúde e da solidariedade
social, a crítica ao sistema fiscal em vigor e ao euro-optimismo
reinante no PS, está muito do que de essencial deveria preocupar
e orientar o pensamento e a prática de um partido que se afirma
socialista. E no entanto...
No entanto, há algo nesta moção, como noutras tomadas de
posição anteriores, que soa a inconsequência. Ainda há bem
pouco tempo, no calor da polémica em torno das co-incineradoras,
Alegre veio a terreiro combater as opções do Governo para, logo
de seguida, se render aos argumentos de Guterres e tomar como
boas as promessas de estudo e outras panaceias com que o
executivo procurou quebrar o ímpeto da oposição popular em
tão delicada matéria.
Com a moção ao Congresso parece ter sucedido o mesmo. Segundo
consta, após uma conversa com o primeiro-ministro o poeta
rebelde esfriou os ânimos, e o que poderia ser visto como uma
moção de política alternativa à moção oficial esvaziou-se
para meras chamadas de atenção que os congresssistas vão sem
dúvida ouvir no Coliseu com complacência e mal disfarçada
impaciência, para depois polidamente aplaudirem e esquecerem
logo de seguida.
Bem pode Manuel Alegre afirmar que «a democracia faz-se do falar
sem medo» e inquietar-se com o facto de, como disse ainda no
fim-de-semana, se estar «a debater pouco no Partido
Socialista», que se a sua acção se ficar por aí não hão-de
ser grandes os resultados. Parafraseando o próprio poeta, dá
para perguntar: «Palavras? Só palavras?»
Manuel Alegre parece não ser capaz de escapar ao poder
encantatório das palavras, das suas e das de outros - como o
primeiro-ministro -, mesmo quando acaba por ser transformado num
mero ornamento que se ostenta como aquelas joias de família de
que ninguém gosta, ninguém usa, mas que não se podem deitar
fora. O que é no mínimo patético.
Hábil manipulador de palavras, Guterres tem sabido, mais
do que esgrimir, apaziguar os ânimos dos contestatários e
servir-se deles para compor o ramalhete do diálogo que tanto
gosta de arvorar. Sempre que as circunstâncias o exigem,
Guterres nem sequer hesita em tirar uma flôr do ramo e
ostentá-la na lapela. Rosa, de preferência. E sem espinhos,
evidentemente. - Anabela Fino