Absoluta e inequivocamente idênticos


Por mais que se esforcem por o iludir, a semelhança de política e de comportamentos entre o actual governo e o seu antecessor é um facto. Questão aliás repetidamente testemunhada por um leque não desprezível de comentadores e analistas e que mais recentemente, por razões da conjuntura ou táctica militante, alguns deixaram de sublinhar.
Com mais ou menos sorrisos, mais ou menos conversa, mais ou menos oratória social, o que se pode afirmar é que identificar diferenças entre as políticas, orientações e opções deste governo e do que o precedeu constitui, senão tarefa irresolúvel, pelo menos exercício difícil de resolver.
Neste mimetismo de políticas e comportamentos, incompreendido seria se a actual maioria, em período final de mandato, não cultivasse o seu próprio tabu. No caso presente o da chamada "maioria inequívoca" eufemismo inventado esforçadamente pelos teóricos da terceira via para designar a já gasta e conotada expressão da "maioria absoluta". Expressão que como se sabe aparece repetidamente inscrita na principal moção presente ao congresso do PS, a de Guterres e Vitorino, a única aliás para levar a sério.

Pelos comentários que suscitou, pelo contorcionismo verbal que exigiu a quem pretendeu explicar que o que ali se dizia não era obviamente o que dali se inferia, a expressão ganhou forma de poder vir a constituir-se no tabu do PS.
O verbo está propositadamente conjugado no condicional porque esta coisa de tabus tem os seus rituais e ciência, não ao alcance de qualquer.
Daí que por inabilidade ou irreprimível intenção, Vitorino tenha deixado a boca fugir-lhe para a verdade ao tornar claro, numa recente entrevista, que aquilo mesmo que a expressão inequívoca queria significar era absoluta. Claro que uma maioria absoluta exigida e reclamada de modo distinto à do PSD , sem arrogâncias e com muita humildade, como apressadamente quis esclarecer. Só que com os mesmos pressupostos, a mesma lógica, o mesmo objectivo.

Também a recente entrevista de Assis parece revelar que um pouco à revelia da táctica prevista há quem não resista a trilhar os caminhos da mesmíssima chantagem e coacção política sobre os eleitores desenvolvida em torno da teoria da estabilidade e do caos.
Sejamos claros. Quando Assis pretende atribuir aos eleitores a noção de mais fácil governabilidade com uma maioria absoluta está sobretudo a pensar no que para o governo tal objectivo representaria. Mãos livres para prosseguir sem resistências e obstáculos a sua política de enfeudamento ao grande capital e de satisfação mais acelerada dos interesses do grande patronato.
Se há algo que esta legislatura veio revelar é que foi a inexistência de uma maioria absoluta que permitiu impedir ou limitar o que de mais negativo e atentatório o governo tinha em vista promover, e aprovar o que mais positivamente contribuiu para atenuar injustiças e desigualdades e consagrar direitos.

Bastará trazer à memória matérias como a da legislação laboral ou dos impostos no último Orçamento para se concluir que uma maioria absoluta do PS seria, como a do PSD foi, um obstáculo ainda maior à defesa dos interesses de quem trabalha, ao aprofundamento de direitos, a mais justiça social, a uma melhor distribuição da riqueza. E seria, absoluta e inequivocamente, contrária à necessidade de uma viragem e de uma política de esquerda. E inequivocamente impulsionadora da continuação e acentuação da política de direita. — Jorge Cordeiro


«Avante!» Nº 1314 - 4.Fevereiro.1999