Crónica
Efeito
de Estufa
Muitas vezes não depende do rigor com que
falamos, nem da precisão da escrita o facto de nos
surpreendermos a ser interpretados de forma diversa em relação
à intenção que nos levou a falar ou a escrever. A surpresa
pode ser gratificante, no caso do discurso - do texto -
literário. Em quantas ocasiões nos sucedeu reler uma obra,
daquelas que nos acompanham pela vida fora, e darmos conta de que
a interpretamos de modo diferente, ao sabor dos anos que
decorreram? Ou, no que respeita aos autores literários, quantas
vezes se lhe deparam leitores e leituras de obras suas que lhes
desvendam a si, escritores, novos ângulos e visões inesperadas,
a partir de uma escrita que lhes pareceu definitiva, fixada e
encerrada «para sempre» em papel?
A interpretação de uma comunicação, que pode ser gravada - em
papel, no celulóide de um filme, na fita magnética de um
aparelho qualquer, no vinil de um velho disco, na pedra mais
antiga -, ou que pode apenas ser lançada ao vento, esvoaçando
logo as palavras ou as notas de música, essa interpretação é o
que está no meio, o que interfere, o que realmente
conta entre o dito e o ouvido, o escrito e o lido, a cor e os
olhos. Nessa interpretação, o que mais conta é a intenção e
o interesse, em ambos os extremos da comunicação. E nesse fios
que os ligam, acontece que nos podemos enganar. Como será o caso
da clássica história da rapariga que diz não e pretende dizer
sim, ou do rapaz que acha que ela quis dizer sim e afinal era
mesmo não.
Nasceram-me estas reflexões a propósito de um programa que vi
há dias num canal de TV por cabo, discorrendo sobre o efeito de
estufa e do «aquecimento global do planeta». Parece que,
afinal, as conclusões dos cientistas eram erradas, mas que os
«políticos» influentes de então - no tempo daqueles quatro
cavaleiros de um apocalipse de trazer por casa que marcaram o
final do século (Reagan, Thatcher, Gorbatchov e Voitila) -
acharam por bem propagandear. Que intenção movia os autores do
discurso, que interesse tinham os governantes ao utilizá-lo?
Sabemos bem o quanto o poder é determinante em qualquer
discurso, sobretudo no discurso dito mediático - o que,
reivindicando o estatuto informativo, propagandeia e pretende
influir na consciência e na acção de quem o «sofre». Sabemos
o quanto o discurso da «arte» lhe pretende fugir e quantas
vezes o da ciência foi pago ao preço da liberdade ou da vida.
Mas nenhum deles escapa à pressão do poder. Um poder que, se os
não pode calar, «escolhe» e promove os que lhe interessam.
Não partilhamos, pois, a opinião do apresentador desse programa
quando diz que os governantes aproveitaram o discurso da
catástrofe por efeito de estufa, «pressionados» pela
aceitação pública dos dados divulgados pelos cientistas.
Achamos que estes serviam bem a intenção do poder nos países
desenvolvidos, determinado em conter o desenvolvimento no resto
do mundo e em explicar as dificuldades de crescimento no seu.
Repetia-se o que sucedeu em
princípios dos anos 70. O aparecimento da OPEP (os países
produtores de petróleo organizados que fixaram o preço do
barril) fez disparar um discurso catastrófico e anunciou ao
mundo - tão cientificamente! - o esgotamento para breve dos
recursos de combustível fóssil (enquanto os soviéticos
declaravam que só as reservas conhecidas, ao ritmo do consumo de
então, dariam para mais 400 anos). Tal discurso pôs a Europa a
andar de bicicleta e levou à consagração de uma nova
«figura» económica - o «crescimento zero»... Muito a
propósito para explicar a crise económica e as dificuldades do
imperialismo e para fazer aceitar ao povo como sendo do seu
interesse poupar na gasolina e admitir a «desaceleração» como
inevitável e o desemprego como o menor dos males...
Temos, assim, intenção e interesse a moldar o significado do
discurso. Andávamos aí reflectindo nisto e traçando
paralelismos com o discurso político da nossa praça, povoado de
recados, dissimulados interesses e segundas intenções, quando,
nos media, irrompe a notícia: Mário Soares ia ser
candidato: Não apenas a deputado ao Parlamento Europeu mas à
presidência do mesmo (na boa tradição da politiquice lusitana
que faz de cada cabeça de lista um candidato a primeiro
ministro).
Perguntado sobre o assunto, Guterres terá dito: «O Dr. Mário
Soares é tão bom, tão bom, que não me atrevo a convidá-lo.»
Mário Soares, entretanto, respondia: «Eu cá ainda não fui
convidado.» Paulo Portas declarava: «Se ele se candidatar, eu
candidato-me contra ele.» Marcelo, sobre isto, disse que Portas
«fez muito bem».
Interpretando, segundo o que nos parece ser a intenção de cada
um, teríamos Guterres a querer dizer que «nem pensem nisso»;
Soares a suplicar, «Convidem-me!»; Portas a esclarecer - «À
frente da AD estou eu.» Quanto a Marcelo, basta-nos
interpretar-lhe a cor da face: amarela.
E quanto aos leitores e eleitores? Que interesse têm eles nisso?
Leandro Martins