Um escândalo
à meia-noite


A julgar pelo que foi anunciado, vai já a mais de meio a transmissão pela SIC da série "Salazar", assinada por José Mendonça da Cruz. Embora de impacto atenuado pela circunstância de ser transmitida um pouco depois da meia-noite (não tão a desoras, contudo, quanto muitos outros programas de qualidade), é sem dúvida o maior empreendimento de propaganda da ditadura e do seu líder havido na TV portuguesa nos últimos vinte e cinco anos, se não desde sempre, e eu fico parvo, mais ainda do que é costume, com a passividade de sectores antifascistas portugueses perante o acontecimento, aparentemente esquecidos do quem cala consente, isto é, aceita e concorda.

Acredito, naturalmente, que haja quem suponha que ninguém dá pela coisa, mas isso é desatender, pelo menos, ao facto de que aquilo surge como obra de História, já oficiosa se não oficial, e ameaça tornar-se fonte e referência obrigatória para futuras abordagens do tema, tanto mais aparentemente credível quanto não desmentida.

A série reivindica-se do estatuto de isenção e neutralidade, o que desde logo não me parece de indiscutível legitimidade por não se me afigurar aceitável a neutralidade (no sentido de posição equidistante entre dois pólos) entre opressão e oprimido, iniquidade e sede de justiça, carrasco e vítima, Hitler e Jean Moulin). Porém, acontece que mesmo essa alegada neutralidade é de facto uma impostura, o que aliás é desmascarado pelos nomes dos quatro "consultores" da série identificados no genérico final de cada episódio, prudentemente passado nos ecrãs em alta velocidade: Franco Nogueira, Kaúlza de Arriaga, Manuel Arouca e Maria José de la Fuente. Quer dizer: o autor não julgou necessário equilibrar as "consultas" a dois dos mais devotados apaniguados do regime e do ditador com pelo menos um nome de destacado resistente ao fascismo. De resto, transmitido já o quarto de seis episódios e percorridos os tempos de mais violenta repressão, ainda por lá não se viu um único comunista nem a menor explicação para tão escandalosa ausência. Pelos vistos, José Mendonça da Cruz comunga do parecer de um censor em exercício nesses tempos segundo o qual "o Partido Comunista Português não existe" (cit. em "Os Segredos da Censura", de César Príncipe). Como o que não existe não tem direito a ser ouvido nem no todo nem em parte, a série dispensou-se de ouvir quem muito bem podia ser um desmancha-prazeres.

As mentiras reeditadas

Não chega o espaço para abordar com vagar mínimo todas as verdades incontroversas, mais as por ela própria forjadas directa ou indirectamente. E indispensável, de qualquer modo, denunciar a constante utilização de imagens extraídas do documentarismo propagandístico da época sem identificação como tais, assim se repetindo e actualizando o efeito mistificatório que visaram, bem como a recolha de depoimentos abonatórios do ditador e da ditadura sem contraponto com testemunhos de sentido contrário (saliente-se, a propósito, que os opositores ouvidos, já de si geralmente moderados, produziram declarações que surgiram moderadíssimas, algumas mesmo de uma inocuidade e irrelevância surpreendentes, como as de Almeida Santos, de cuja inteligência e capacidade se esperava naturalmente outra coisa e que nem valia a pena ter incomodado para tão pouco). Quanto a outras aldrabices, e citando apenas as que é forçoso considerar de fundo, registem-se pelo menos a atribuição a Salazar do milagre económico (escondendo que ele só impôs um equilíbrio orçamental financiado à força pelas classes mais exploradas) do milagre político da paz num mundo em guerra (estivesse Portugal situado na Europa Central e então é que poderia ver-se o poder miraculoso do santinho), do milagre da "ordem nas ruas e nos espíritos" (graças à política torcionária e assassina, às fomes que criam suicídios e na tuberculosa generalizada, aos Tarrafais e aos carros do Aljube), da prodigiosa intuição política (que contudo não intuiu que o regime se iria afundar no pântano de guerras coloniais obviamente sem solução nem vergonha), no progresso do País em diversos sectores (como se em 40 anos do século XX o milagre não fosse ter ficado na mesma), no mais que já aqui não cabe mas outros decerto poderão lembrar e denunciar ainda melhor que eu.

Só uma palavra final para referir o tom quase hagiográfico dos dados de carácter biográfico relativos ao homem, abundantes e todos na esteira das tendências canonizantes, ou pelo menos beatificantes, que parecem confundir Salazar com o Padre Cruz, se não com Santa Teresa de Ávila. Ele era todo desprendimento dos bens terrenos, bons costumes antigos, apego à simplicidade: refeições frugais em horário campesino, manta nos joelhos para o aquecimento do corpo, missazinha imprescindível para o aquecimento da alma. Como se devêssemos pôr no altar escorpiões e sanguessugas por serem discretos e não se alimentarem de bifes do lombo. - Correia da Fonseca


«Avante!» Nº 1314 - 4.Fevereiro.1999