Os últimos dias da ERU em Portugal
Rostos e custos
da deslocalização impune

Texto de Domingos Mealha
Foto de
Jorge Caria


Ao terminar o ano de 1998 foram anunciados os encerramentos de algumas empresas multinacionais que, desde a Texas Instruments Samsung Electrónica Portugal até à Nestlé/Longa Vida, passando pela holandesa ERU, tinham um traço comum: fechavam unidades fabris em Portugal, para abrir em países com mão-de-obra mais barata. Umas centenas de trabalhadores e respectivas famílias ficaram assim a saber o significado de um vocábulo próprio da época do chamado neo-liberalismo: a deslocalização que, com governos mais ou menos rosados (alguém ajuizará se a cor tem algo a ver com vergonha), deixa impunes os patrões que nem respeitam os compromissos assumidos perante o Estado.
Na Abóbada, concelho de Cascais, fomos ouvir o outro lado da deslocalização: os trabalhadores, sobre quem recaem os sacrifícios e as injustiças da desenfreada corrida mundial ao lucro mais rápido e mais fácil. Quem apregoou que as pessoas não são números, quando se tratou de conquistar votos, não pode nestes casos assobiar para o ar e esquecer que os custos da deslocalização têm rostos.

Na fábrica de queijos ERU os rostos eram, na maioria, de mulheres com cerca de 50 anos, com pouca ou nenhuma instrução escolar, mas com três décadas de trabalho, sempre na mesma fábrica, com ordenados que rondavam os 65 contos e aos quais, habilidosamente e ao sabor da opinião dos chefes, a administração acrescentava (ou não) prémios chamados de assiduidade ou de produtividade.
Já estão vazias e vendidas as instalações que há dois meses ainda albergavam a fábrica da ERU, na zona industrial da Abóbada, e onde estivemos na semana passada com Moisés Caetano, o dirigente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Alimentação do Sul e Tabacos que acompanhou a luta contra o encerramento.
Quando a fábrica fechou, a 18 de Dezembro, toda a gente recebeu como indemnização um valor, em raros casos superior a dois mil contos, correspondente ao mínimo legal de um mês de salário por cada ano de trabalho. Mas só a firmeza dos trabalhadores, apoiados pelo seu sindicato, obrigou a empresa a cumprir a lei.
Enquanto a Inspecção do Trabalho, no início de Fevereiro, ainda ignorava qual tinha sido o desfecho deste caso, os trabalhadores fizeram tudo o que podiam para salvaguardar os seus direitos. Até a GNR chamaram, nas vésperas do feriado de 1 de Dezembro, quando pararam o trabalho e bloquearam os portões da empresa, para impedirem a retirada das últimas máquinas.
O Ministério da Economia não foi capaz de esclarecer o sindicato sobre as dívidas da ERU, o recurso ao Plano Mateus e a dinheiros comunitários e a forma como a empresa iria agora corresponder aos compromissos assumidos perante o Estado. «Batemos a uma porta, mandam-nos para outra, que também se fecha logo de seguida», lamenta o sindicalista, resumindo as experiências de contactos com ministérios e secretarias para procurar resolver problemas de trabalhadores.

Cresceu
e desapareceu

A fábrica, orientada sobretudo para a exportação, «em Outubro estava a trabalhar a todo o gás, recorria a horas extraordinárias e a trabalhadores a prazo, mas a 5 de Novembro anunciou que ia encerrar e a 18 de Dezembro encerrou, pura e simplesmente, para ir abrir fábricas na Hungria e na Argélia» - é assim que Moisés Caetano retrata a rapidez e a surpresa com que foi feita a deslocalização da ERU, que vai manter em Portugal a distribuição dos produtos da marca, agora produzidos na Argélia.
Ana Rosado tem 42 anos, é analista química, esteve 17 anos ao serviço da ERU e foi a trabalhadora com mais anos consecutivos no controlo de qualidade. No desemprego desde Dezembro, recorda como a sua secção chegou a merecer rasgados elogios de um dos administradores, que a colocou entre as melhores a nível europeu. Lembra como as operárias, «quando havia um problema qualquer, metiam mãos e pés, montavam-se em cima das máquinas e resolviam o que fosse preciso». Recorda que «trabalhámos muito, houve muitos acidentes de trabalho, muitos dedos perdidos», com horários de produção que chegaram a ser de 24 horas, para responder a grandes encomendas.
Aponta como sentida injustiça o facto de que «a ERU cresceu a partir do nosso trabalho, e agora fecharam-nos a fábrica, não tiveram nenhuma preocupação social para com as pessoas que ergueram a empresa».
Arminda Silva tem hoje 53 anos, trabalhou 23 ao serviço da ERU, foi supervisora, responsável de linha, durante dez anos. Lembra que foi para a fábrica já depois do 25 de Abril, «a contrato, comecei por fazer tudo, não havia classificações, o trabalho era bastante duro, desde carregar caixotes até às limpezas, tratar de porcos, lavar casas de banho, caiar muros...» Acha que, «o 25 de Abril não chegou a entrar naquela fábrica», onde «os piores trabalhos eram para as mulheres e nós nem podíamos protestar, "não queres assim, vais para a rua"».
Maria dos Anjos, operária com 51 anos de idade, esteve 21 anos a trabalhar na ERU, e foi delegada sindical nos últimos 4 anos. Não tem hoje dúvidas de que «o sindicato fez um bom trabalho, toda a gente reconhece que, se não fosse o sindicato, não recebíamos assim as indemnizações, recebíamos em prestações, como a empresa quis no princípio». E aproveita a oportunidade para afirmar, grata, que «também tivemos um bom apoio da GNR».

Como já não se faz...

Contaram-nos como aqui chegava a matéria-prima, queijos comprados, a partir da sede holandesa, na Nova Zelândia e noutros mercados com os preços mais baixos. Não era preciso ser muito bom queijo, bastava que garantisse um bom resultado do produto final. A matéria-prima era guardada em frigoríficos, até passar à secção da preparação, onde eram retiradas as embalagens, algum bolor... ou onde podia até ser rejeitada, mas isto só raramente. Os queijos eram depois triturados, em grandes depósitos, por um sem-fim que esbodegava aquilo tudo. Houve tempo em que os depósitos eram grandes banheiras, com uns setenta quilos, e tinham que ser carregadas por homens e mulheres. Esta massa passava às fundidoras, juntamente com uma mistura de manteiga, água, sais fundentes e outros ingredientes, conforme as características pretendidas (Servitas, fatias, Flamenguito ou outros produtos finais). As fundidoras tubulares foram substituídas por um sistema de steril-choque, a 140 graus. Um líquido a uma temperatura mais baixa percorria as tubagens e saía para as secções de embalagem, onde a massa quente tomava a forma do molde escolhido. Agora restam as paredes, algum lixo e as mágoas de quem aqui trabalhou anos e anos.


Casos contados

Fundos, dívidas e outros motivos

«A empresa recorreu há cinco anos a fundos da Comunidade Europeia para se remodelar. Soubemos que também recorreu ao Plano Mateus, para pagar uma dívida de 700 mil contos. E tínhamos conhecimento de que a empresa não pagava à Alfândega.
«O último gestor, espanhol, veio há dois anos para, quanto a mim, tentar viabilizar a empresa, porque a ERU tinha mercado, vendia tudo o que produzia. Na altura, não se previa este desfecho.
«Só que, como a dívida à Alfândega era elevada, a empresa tinha que pagar juros, só podia levantar matéria-prima pagando previamente os direitos alfandegários. Recorreu ao Plano Mateus, para pagar à Alfândega. Já tinha recorrido a fundos comunitários, mas em vez de renovarem as máquinas, fizeram obras no escritório e no refeitório.
«Estes empréstimos, regra geral, são concedidos a empresas que assumem determinados compromissos de manutenção do emprego. A ERU manteve-se durante estes anos a laborar, conservando o mesmo número de trabalhadores. Mas, libertos desses compromissos, fizeram o que faz qualquer multinacional: levou a produção para locais próximos dos novos mercados e com mão-de-obra mais barata, para obter um lucro rápido. Deixaram aqui a dívida, liquidaram os postos de trabalho, levantaram as máquinas e foram abrir uma fábrica na Hungria e outra na Argélia.»
(Moisés Caetano)

Da Amadora a Budapeste

«A ERU tem origem na Holanda. Pelo que eu ouvi, há trinta e tal anos veio para cá um senhor que abriu um barracãozito na Amadora, com meia dúzia de fundidoras. Cheguei a ouvir alguns trabalhadores mais antigos contarem que, para acabarem encomendas a horas, chegavam a dormir junto das fundidoras.
«Depois vieram para a Abóbada, há uns 30 anos.
«Na Holanda a ERU também não tinha grande dimensão e trabalhava quase só para o mercado holandês. Em Portugal houve uma grande expansão dos negócios. Da nossa fábrica, com horas e horas de trabalho em muito difíceis condições, saíram toneladas e toneladas de queijo para quase todo o Mundo. Chegou-se a fazer três turnos, em laboração contínua, com uns trezentos trabalhadores, com muita gente contratada.
«Só esta evolução é que permitiu o negócio ramificar-se para a Hungria e a Argélia e permitiu criar uma fábrica, com tecnologia de ponta, na Holanda.»
(Ana Rosado)

«Nem que vá daqui com zero!»

«Aquilo estava preparado para a indemnização não ter um princípio igual para toda a gente. Não queriam que o sindicato entrasse nisto e pretendiam negociar individualmente com cada pessoa.
«Nas propostas individuais, diziam que iam pagar as indemnizações em prestações durante doze ou seis meses... Se alguém quisesse receber tudo já, tinha que aceitar receber só 85 por cento da indemnização. Fizeram isto a 18 pessoas.
«Eu fui uma dessas 18, e não aceitei a proposta deles. Exigi mês e meio por cada ano e que contassem também como ordenado aquilo que me pagavam como prémio de produtividade. E também contavam menos três anos do que aqueles que eu tinha ao serviço da fábrica.
«Responderam-me que não ia haver problemas, que até iam aceitar algumas considerações que eu tinha feito. Disseram-me que depois davam uma resposta, "mas agora queremos uma coisa muito importante de si, a senhora vai agora lá abaixo, é uma pessoa esclarecida, as outras ouvem-na muito bem, e vai dizer-lhes que deixem sair as máquinas, que o cliente já está à espera".
«Quer dizer, se eu fizesse aquele papel que eles queriam, até ia ter umas bonificaçõezinhas... Mas cheguei cá abaixo, deu-me uma crise de choro e resolvi: Nem pensar! Nem que eu vá daqui com zero, mas eu vou dizer é o contrário, que não deve haver prestações e toda a gente deve receber o dinheiro no dia em que isto fechar
(Arminda Silva)

 

Patronais agradecimentos

«Além de indicarem menos anos de trabalho do que aqueles que muitos de nós tínhamos, para verem se assim pagavam menos indemnizações, tiveram atitudes muito injustas. Por exemplo, a um trabalhador que tinha perdido há pouco tempo dois dedos num acidente, queriam negar a indemnização, porque tinha 64 anos e estava à beira de se reformar.
«O patrão até foi lá a casa dele, para lhe dizer que tivesse calma e esperasse, que eles iam fazer-lhe um seguro na Holanda. Mas a filha aconselhou-o e foi com ele ao sindicato, e só assim é que lhe pagaram a indemnização dos 34 anos que trabalhou na ERU. Mas não lhe pagaram as férias.»
(Maria dos Anjos)

Não saem, não senhor!

«No dia em que não deixámos sair as máquinas, a minha linha era a única que estava a produzir. Quando vimos os mecânicos a desmontar máquinas, decidimos parar. O encarregado berrou até mais não, que agora tínhamos perdido tudo, a razão e as indemnizações... Mas eles já sabiam que a posição dos trabalhadores era não deixar levantar mais máquinas. E nós já tínhamos escrito uma carta da nossa comissão, para o caso de eles quererem tirar máquinas, que fomos logo entregar na Inspecção do Trabalho.
«Estávamos nós, da comissão, reunidos com o administrador e outros, a pedirem-nos que deixássemos sair as máquinas, quando toca o telefone. Era da Inspecção, tinham recebido a nossa informação e queriam saber o que se passava. Claro que o homem da administração disse que devia haver engano, que estavam ali muito calmamente a reunir com os representantes dos trabalhadores.»
(Arminda Silva)


«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999