Lembrar vitórias para voltar a vencer
Luís
Sá
Membro da Comissão Política do CC do PCP
Todos os
dias somos confrontados com horrores de todo o tipo.
Cruzamos com eles nas ruas. Há novos nomes como «exclusão
social», mas na realidade são fenómenos antigos como
discriminação e desigualdade. Deparamos com eles na
comunicação social, no nosso país e por todo o mundo, apesar
dos seus critérios frequentes sobre a selecção do que é
notícia poderem, por vezes, ser mais do que discutíveis e a
disputa de audiências só permitir apresentar como espectáculo
esse horror. É claro, por exemplo, que não é notícia o jovem
português que, para ter emprego, se compromete a passar cinco
anos sem ter férias nem casar. Nem é notícia a exploração
que acontece todos os dias em tantos e tantos pontos do globo,
nem o desemprego que cresce, nem a angústia dos que vêem a
empresa fechar e se interrogam sobre o dia de amanhã, nem os
jovens que não sabem que futuro vão ter.
Mas, mesmo assim, é
constante o apelo que surge, para quem não renunciou à luta
pela dignidade humana, a "não considerar como normal o que
acontece todos os dias". É o apelo, no fundo, à revolta e
à vontade transformadora, à recusa da resignação perante as
injustiças e as desigualdades mesmo em tempos em que estas
parecem eternas e consolidadas, em que a especulação rende
muito mais do que a produção e em que se sacrificam valores
elementares como o ambiente e o futuro da Humanidade.
Estamos obviamente em tempo de dificuldades para os comunistas,
para a esquerda e para os democratas mais radicais em geral, quer
em Portugal, quer na União Europeia, quer a um nível mais
vasto. Regressou a ideia da omnipotência reguladora do mercado a
nível global, enquanto a democracia, que quereria dizer
«governo do povo» lhe permite governar bem pouco. Ao mesmo
tempo, é apresentada como descoberta da teoria económica do
século XX a tese liberal da abstenção do Estado que nada
acrescentou à teoria económica do século XVIII.
Entretanto, defendeu-se em nome do «Estado mínimo» a
regressão total em matéria de direitos fundamentais: onde se
falava não só de uma primeira geração de direitos de
liberdade, mas também de uma segunda geração de direitos do
trabalho e do emprego e de carácter social e de uma terceira
geração de direitos do ambiente e dos consumidores, passou a
falar-se da necessidade de o Estado, ou os Estados em conjunto,
garantirem apenas a liberdade e a propriedade, sendo tudo o resto
necessariamente caminhos para a burocracia e a opressão. E
aquilo que verdadeiramente se procura e assegurar cartas de
garantia dos investimentos das multinacionais contra os direitos
sociais ou ambientais e a regulação pelos Estados, em vez de
assegurar limiares mínimos nesta matéria que combatam a
concorrência para assegurar salários mais baixos, menos
liberdade e direitos de quem trabalha e menos protecção do
ambiente.
Invoca-se a "globalização" e a "integração
continental" como se a manifestação destas tendências
tivesse que ser a unificação mundial dos mercados, o
neoliberalismo e a desregulação, a deslocalização de
investimentos das multinacionais em função de onde existirem em
cada momento menos direitos sociais e menos protecção do
ambiente. Não se pensa que integração ou globalização
poderia ser assegurar limiares mínimos de regulação e
protecção dos direitos dos que menos têm e do património
comum da Humanidade que é indispensável para assegurar o seu
futuro.
Neste período de direitos ameaçados, ou noutros casos pura e
simplesmente esvaziados, pode existir o risco de perder a
perspectiva das profundas transformações históricas já
verificadas e das possibilidades que se continuarão a desenhar,
mesmo estando num período que não é de novas transformações
radicais. Daí decorreria a transformação de um justificado
"pessimismo da razão", próprio da existência de
grandes progressos de um capitalismo selvagem, num injustificado
"pessimismo da vontade". É fácil passar à
afirmação da impossibilidade de lutar com êxito e à opção
pelo mais desenfreado individualismo.
Daí, que se imponha, hoje, lembrar a trajectória histórica da
espécie humana na luta contra a injustiça e a desigualdade e os
êxitos já conseguidos, apesar de tudo o que permanece por
transformar. Seria um erro político grosseiro não assumir as
inúmeras conquistas progressistas como parte de uma herança
histórica dos comunistas e da esquerda. Podemos pensar em
múltiplos exemplos: desde a abolição da escravatura à
abolição do absolutismo, desde a abolição da Inquisição ao
fim do colonialismo e da pena de morte, desde os direitos dos
trabalhadores aos direitos sociais, desde alguns direitos das
mulheres à consagração de alguns direitos da juventude e da
terceira idade, entre tantos e tantos outros. Cada um deles pode
parece hoje tão natural como o sol nascer. Mas seriam vistos
como utópicos há séculos. Pensemos, por exemplo, entre tantos
exemplos, na nossa Constituição de 1822, uma das mais
avançadas da época, e na sua exclusão do voto das mulheres,
dos vadios e dos criados de servir, dos analfabetos, e em
Constituições posteriores ainda mais recuadas; pensemos em cada
avanço e também em recuos posteriores, como tudo foi penoso, e
como acabou em tudo acabou por se afirmar afinal, apesar de tudo,
um sentido progressista...
Nos tempos mais recentes foi uma vitória em Portugal a
Revolução de Abril e tudo o que dela permanece como marcas
profundas da vida política portuguesa. E o PSD acabou em minoria
após dez anos de cavaquismo e da proclamação por muitos de que
o regime estaria "mexicanizado", isto é, de que seria
eterno e sem alternativa.
Claro que o Governo
do PS não correspondeu às expectativas de muitos dos que as
alimentaram. Mas também é evidente que, num vasto conjunto de
casos, o Partido Socialista foi obrigado a negociar e a
entender-se com o PCP, em alguns casos em pontos tão importantes
como o Rendimento Mínimo Garantido, a redução de impostos e
tantos outros. É claro que não foram os entendimentos pontuais
que marcaram o sentido geral da governação. Mas mal estaríamos
se, em benefício da tese da igualização absoluta do PS e PSD,
se passasse em claro a diferença que resulta de existir uma
maioria relativa do PS na Assembleia da República e daí poderem
decorrer benefícios, maiores ou menores, para os que menos têm,
sobretudo quando existem grandes lutas pelos seus direitos. Ou
então, se assumíssemos os êxitos que fosse possível conseguir
não como vitórias populares, mas como uma "legitimação
do PS", renunciando a afirmar que por vezes é possível
vencer. Seria uma crueldade para os mais carentes e desprotegidos
não conseguir tudo o que for possível. É preciso tornar
imediatamente útil, e não num futuro distante, a luta popular e
partidária e a participação do PCP a nível parlamentar e em
todas as outras instituições. Já agora, as lutas populares ou
os trabalhadores e organizações que pedem ao PCP que lhes dê
voz e iniciativas - e que vença quando é possível - passariam
a não ter direito a essa voz e a vencer. Em vez de assumir a
relação dialéctica entre a luta em torno dos objectivos
concretos e imediatos e os objectivos de longo prazo e entre o
trabalho nas instituições e as lutas populares e das diferentes
organizações sociais progressistas e das populações,
apostar-se-ia numa técnica de "quanto pior melhor",
não assumindo nem valorizando o muito que já se ganhou e o que
é possível vencer no futuro.
Valorizar vitórias em tempos difíceis - mesmo aquelas que os
povos e as forças progressistas obtiveram antes da fundação
dos Partidos Comunistas, e sobretudo as que foram obtidas com a
intervenção destes - é assumir uma perspectiva histórica que
apela não só ao prosseguimento da luta por razões de
coerência e por razões de princípio, mas também à
convicção em que é possível vencer.
Valorizar as vitórias conseguidas nesta legislatura, em
especial, é demonstrar que os que menos têm e lutam podem
vencer e que o PCP é a sua voz e o seu instrumento de luta
essencial. Não é «ceder ao PS», «legitimar o PS» ou
qualquer orientação semelhante.
É organizando as lutas em torno dos objectivos imediatos e
mostrando as possibilidades de obter êxitos em algumas questões
que se estimula as lutas mais amplas e por objectivos mais
avançados e mais radicalmente democráticos.
A alternativa seria atribuir os êxitos nas lutas à boa vontade
do próprio PS e contribuir assim para a credibilidade da tese da
sua boa vontade e da sua benevolência e preocupações sociais
das suas políticas, em vez de deixar claro o papel central e
insubstituível do PCP em soluções democráticas alternativas,
que consigam êxitos imediatos, ainda que pontuais, e venham a,
por fim, viabilizar noutro contexto, com uma grande
movimentação política e social, uma política de esquerda em
Portugal.