A válvula de escape
Por Lino de Carvalho
Na véspera do Congresso do PS, Jaime Gama, numa entrevista que deu a um diário de grande circulação, desferiu uma frase "assassina" e tremendamente esclarecedora. Referindo-se a Manuel Alegre e á sua tão cantada moção disse Jaime Gama: "É sempre bom abrir válvulas de escape ...". Exactamente. Manuel Alegre e a sua moção foram a válvula de escape nos dias que antecederam o Congresso do PS. E não mais do que isso. Claro, com um objectivo premonitoriamente expresso por uma jornalista num dos muitos textos escritos sobre o conclave socialista. Dizia Ana Sá Lopes (O Público - 06/02/99) a propósito ainda da moção de Alegre: "... a direcção socialista estará interessada em dar a ideia de que vai mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma.
O papel de
porta-vozes da crítica consentida levado a cabo por Alegre e
companheiros acaba por funcionar, ao contrário do que
proclamaram, para consolidar no seu sítio o irremediável
unanimismo". A prova disso mesmo esteve, aliás, no discurso
de Alegre ao cobrir "á esquerda" o discurso de
António Guterres afirmando que se a moção do Secretário-geral
fosse igual ao seu discurso ele tinha-se abstido de apresentar a
sua própria moção que, aliás, aceitou ser votada não como
texto alternativo mas como texto complementar da moção oficial
quando a razão da sua apresentação tinha precisamente tido
como referência uma forte discordância em relação ao texto
oficial, muito "terceira via" e que Alberto Martins
definiu, num debate do Portugal 2000, como um caminho
vincadamente neo-liberal embora polvilhado com políticas
assistencialistas.
Parafraseando o que vários analistas disseram em relação á AD
bem se pode afirmar que também o PS se parece com um
hipermercado onde tudo se pode ir buscar, um pouco para todos os
gostos.
Dito isto importa também dizer que, obviamente, não é
indiferente, não pode ser indiferente, que no Partido Socialista
existam e se manifestem inquietações e sensibilidades mais á
esquerda, mais próximas das preocupações e das propostas do
PCP. Manuel Alegre, por exemplo, lançou no Congresso do PS um,
assim foi intitulado pelos órgãos de comunicação social,
desafio ao Governo do seu próprio Partido com vista ao
lançamento de um imposto sobre a riqueza. É algo que o PCP tem
proposto e que sempre foi recusado pelo PS. É positivo que
Alegre agora o tenha repetido, desde que tal não signifique
simplesmente mais uma cenarização de esquerda, muito
conveniente á direcção oficial do Partido Socialista
designadamente quando em ano eleitoral quer alargar a sua base
eleitoral para obter a maioria absoluta (objectivo que o PS
também procura servir com a alavanca da candidatura de Mário
Soares ao Parlamento Europeu) e, sobretudo, quando essas
cenarizações não têm qualquer concretização prática.
Aliás não me consta que o Congresso do PS tenha feito alguma
reflexão crítica sobre a política laboral do Governo ou sobre
as opções de desvalorização e desmantelamento das políticas
públicas. Nem dei notícia de qualquer discussão acerca da
política cultural de Carrilho. Em boa verdade não dei conta da
discussão de nenhuma política. Inclusivamente a solução
encontrada pelo Engº. Guterres (de alargar a Comissão Nacional
em 30% passando-a de 201 para 261 membros) para garantir a quota
de 25% para as mulheres nos órgãos estatutários do PS é bem o
exemplo da mistificação, do que representa a maneira de fazer
política "à PS": uma enxurrada de palavras e de
discursos redondos, sempre pontuados com referências para todos
(alguns) gostos para, mantendo tudo na mesma, dar a ideia de que
muda alguma coisa. A verdade é que o Congresso do PS foi, como
não podia deixar de ser, a consagração do Secretário-geral e
da política oficial do PS rematado com a grande operação de
lançamento de Mário Soares como cabeça de lista ao Parlamento
Europeu. Tudo o resto foi cenário, foi quanto muito o falar da
"consciência crítica". Ora, a questão é exactamente
esta. É que quando alguns sectores socialistas defendem uma
aproximação ao PCP - e, pela minha parte, não
desvalorizo essa posição e uma aproximação do
PCP o que parecem querer é alargar ao PCP essa sua
"consciência crítica", fazer do PCP o tal "grilo
falante" e pouco mais. Quero crer que nem todos pensarão
assim. Mas é isso o que de fundamental transparece nas
intervenções públicas de protagonistas dessa sensibilidade no
interior do PS. Como é esclarecedora, para quem tivesse
dúvidas, a forma como o Engº Guterres se referiu ao PCP numa
das suas intervenções: "O PCP não compreendeu que, ao
não garantir o apoio ao PS nos momentos decisivos não se assume
ele próprio como um instrumento útil para derrotar a direita em
Portugal". É a célebre tese do PCP como partido útil, na
versão Assis, mas útil para o Partido Socialista e para dar
cobertura á sua política de direita. Só que a
"utilidade" do PCP é necessária, sim, mas tendo como
linha de referência o País e os trabalhadores, não o servir de
biombo á esquerda para por detrás o PS continuar a optar pelos
modelos e pela roupa da direita. O que nesta matéria se deve
colocar no centro dos debates não é, pois, pôr o PCP a fazer
simplesmente de "consciência crítica" do PS mas, como
se afirma nas conclusões do Comité Central, a "pesar
eficazmente nas soluções políticas e governativas do
país" para romper "decididamente com o ciclo de
políticas de direita desempenhadas ora pelo PS ora pelo
PSD". Na linha, aliás, do que o PCP tem procurado fazer na
Assembleia da República e fora dela. Esta é que é a questão.
Tudo o resto é um mar de ilusões e de equívocos que servirá
á estratégia do PS mas não servirá seguramente a uma efectiva
viragem á esquerda.
É que não basta travestir o Ministro Ferro Rodrigues no S.
Francisco de Assis do Governo quando, simultaneamente, esse mesmo
Governo prossegue aceleradamente a política de privatizações e
de desmantelamento da intervenção do Estado na economia e nas
políticas sociais; quando opta decididamente por uma política
laboral desvalorizadora do valor do trabalho e que corresponde
aos interesses mais conservadores do grande patronato; quando
escolhe o caminho de uma Europa crescentemente federalizadora e
constrangedora de efectivas políticas de coesão, de
desenvolvimento e de defesa do aparelho produtivo nacional;
quando privilegia as relações com os grandes grupos económicos
e com as transnacionais no quadro de opções crescentemente
desregulamentadoras e neo-liberais do investimento estrangeiro;
quando não quer ou não tem a coragem de abordar de frente a
incontornável questão da reforma fiscal ou quando aposta
permanentemente em meras operações de cosmética pré-eleitoral
e de marketing político como foi o caso do anuncio de
mais um (o terceiro nesta legislatura) plano social de combate ao
desemprego no Alentejo como cenário que esconde a ausência de
políticas sustentadas de desenvolvimento.
Recordando análises que foram feitas no início desta
legislatura bem se pode continuar a dizer que as passagens do PS
pelo Governo se traduzem sistemáticamente num contributo para a
alteração da relação de forças na democracia portuguesa a
favor do capital e contra os trabalhadores; a favor das
políticas privadas contra as políticas públicas. Acrescentado
agora com muito discurso sobre o social mas cuja prática pouco
ultrapassa a visão franciscana e a caridade disfarçada.
A solução continua a ser, pois, estarmos sempre disponíveis
para o diálogo e a procura de convergências á esquerda mas
sobretudo estarmos sempre empenhados no reforço das posições
do PCP tanto no terreno social como no terreno eleitoral e
institucional. Esse é o único caminho que garante uma efectiva
viragem á esquerda.