Almeida Garrett
mestre de claridades e da revolução

Por Luísa Mesquita


Almeida Garrett A compreensão e o estudo da produção garrettiana é hoje, mais que ontem, porque também hoje, mais que ontem, Portugal está menos distante deste amante da liberdade, uma permanente fonte de elementos novos que relatam as contradições económicas, políticas, ideológicas e culturais de um momento histórico fundamental para a compreensão de quem fomos, de quem somos e de quem pretendemos ser.

João Baptista da Silva Leitão, que mais tarde acrescentará ao seu nome os apelidos de Almeida Garrett pelos quais é hoje conhecido, nasce no terminus de um século que pretende assumir-se como eterno fazedor de certezas intangíveis, aquelas que só moldam homens indistintos e quietos.
O universo que o jovem Garrett conhece é intemporal, silencia as contradições e está ainda muito longe da Revolução Liberal, dos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
Em seu redor, há um mundo de receios, mas nele e com ele o jovem apreende o sentir do ser e do estar, descobre a interpelação, e o vassalo dialoga com o tirano em Sonho Profético:

"O supremo poder aos reis proveio.
Seus direitos..."
"E Deus, se lhes outorga.
Nenhuma obrigação lhe impôs com eles?
Aos desgraçados, miserandos povos,
Que aos ferros condenou e à desventura,
C’oa eterna obrigação do sofrimento
Nenhum direito deu?"
"Altos decretos
Do Eterno examinar, vos é vedado."

Mas do saber decretado pelo verbo partirá Garrett para o entendimento entre o passado sem resposta e um futuro grávido de promessas.
E é então que a palavra garrettiana se transmuta em acção.
Texto e revolução conjugam-se na procura de um mundo novo que o soldado liberal ajuda a construir e o escritor relata.
E é neste processo de transformação, que se transforma também o homem.
A sua consciência, vinculada sem reservas ao que se passa fora dela, é causa e efeito de uma sociedade em inquieta e perturbadora mutação.
É este o jovem, que, com menos de 20 anos, reflecte, com uma genialidade universalista sobre a cultura, a arte e se envolve sem preconceitos na actividade política no meio do povo, numa época de feroz instabilidade e a quem só a compreensão da realidade incomoda.
Trilha caminhos onde os aplausos são silêncios, entrega-se à aventura revolucionária, embriaga-se na descoberta dos fenómenos sociais e na incerteza das respostas do homem novo.
E é esta consciência que leva Garrett, provavelmente, a afirmar na sessão de 9 de Outubro, a propósito da formação da segunda Câmara das Cortes e da posição do homem público, do homem chamado a pronunciar-se sobre questões importantes que a "...Mais fácil é seguramente a daquele que levado da torrente de opiniões e cuidando dirigir as turbas, quando não é senão empurrado por elas, imaginando-se forte só porque se pôs do lado de fora, vai com o poder que reina, está pela potência que impera... os aplausos estão em roda d’ela, as recompensas lhe chovem em cima; e coroado há-de ser..."
Garrett excedia o seu próprio tempo e por isso se condena como afirmou José Gomes Ferreira "À sua imensa, à sua terrível solidão de homem de génio".
A compreensão e o estudo da produção garrettiana é hoje, mais que ontem, porque também hoje, mais que ontem, Portugal está menos distante deste amante da liberdade, uma permanente fonte de elementos novos que relatam as contradições económicas, políticas, ideológicas e culturais de um momento histórico fundamental para a compreensão de quem fomos, de quem somos e de quem pretendemos ser.

Uma experiência sempre nova

Ler Garrett é ainda hoje um trajecto de experiências sempre novas, de constante questionação de todas as cadeias que coarctam a liberdade do ser humano.
O escritor gritará contra os tiranos, desafiará todos os poderes e perguntará "Não morre o homem quando vive o escravo?"
Do discurso político ao discurso literário, do discurso do amor ao discurso jornalístico, a palavra desvenda-se e revela-se, antes de tudo, como intervenção, como parte de uma autognose que o cidadão, que o escritor, o combatente liberal dirige a si próprio, aos outros e ao país que agora também possui e pelo qual é e quer ser também responsável; e por isso pergunta "...Aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? ... Depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um rico... Cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis."
Se nos disponibilizarmos a viajar hoje, com Almeida Garrett, pela nossa terra, de Lisboa para Santarém, surpreender-nos-emos como, de forma tão natural, a realidade e a ficção se conjugam e servem a sua visão do mundo, de um mundo e de uma escrita avessos a espartilhos escolásticos e abertos à contradição e à reflexão.
Diante da estalagem da Azambuja Garrett declara - "A sociedade é materialista; e a literatura que é a expressão da sociedade é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho rei de facto. Quixote rei de direito.
... É a literatura que é uma hipócrita: tem a religião nos versos, caridade nos romances, fé nos artigos de jornal - como os que dão esmolas para pôr no Diário, que amparam órfãos na Gazeta, e sustentam viúvas nos cartazes dos teatros."
Mestre de claridades e da revolução - no pensar, no agir, no sentir, no discutir, no ser artista e homem - é ele quem realiza a síntese moderna das nossas letras; afirmam-no leitores e estudiosos, fascinados com a relação de cumplicidade crítica que Garrett ousa manter com aquele ou aquela que percorre o mosaico textual do seu discurso.
Orador e poeta, historiador e filósofo, crítico e artista, jurisconsulto e administrador, erudito e homem de estado, o autor do fabuloso e cada vez mais actual texto das Viagens na Minha Terra denuncia o seu profundo conhecimento dos homens e das coisas que só um verdadeiro homem do mundo pode, como ele próprio afirmou, escrever "Este meu inclassificável livro de viagens."
Armado de um sarcasmo, algumas vezes cortante e destruidor, peleja sem tréguas contra hipócritas e sofistas, respeitando sempre crenças, opiniões e sentimentos.

Escrita comprometida

Respondendo a um convite do scalabitano Passos Manuel, Chefe do Partido Setembrista na oposição, Garrett parte para Santarém em Julho de 1853.
Na bagagem transportava as diferentes experiências do exílio, os regressos ao país liberto do poder absolutista, o combate no exército liberal e as promessas de uma escrita comprometida.
Tal como o Arco de Santana havia surgido durante o Cerco do Porto, também Viagens será texto primeiro visto, ouvido, pensado e sentido e só depois escrito.
A Revolução de Setembro de 1836 havia chancelado a vitória dos liberais e motivado Garrett para uma intervenção ainda mais eclética - do teatro ao parlamento, do conservatório ao jornal, cidadão e escritor acreditam na construção de uma nova sociedade.
Mas a guerra civil deixara marcas profundas. Os ódios, os interesses individuais, a corrupção, os oportunismos políticos dos barões afastaram o soldado, o deputado mas não calaram o escritor que, na humildade da palavra, reconhece que errou "Errámos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; mas muito menos ainda pode ser o que é." Porque "...O povo, o povo está são: os corruptos somos nós os que cuidamos saber e ignoramos tudo."
Entretanto, chega a Santarém mas viajante atento, repara que - "...o livro de pedra em que a mais interessante e a mais poética parte das nossas crónicas está escrita. " foi mutilado, rasgado, arrancadas as folhas, "Não se descreve por outro modo o que esta gente chamada governo, ... está fazendo e deixando fazer.
As ruínas do tempo são tristes mas belas, as que as revoluções trazem ficam marcadas com o cunho solene da história. Mas ... as mais brutas reparações da ignorância, os mesquinhos consertos da arte parasita, esses profanam."
O percurso da visita no presente, revisita também o passado na memória do património degradado e simultaneamente transforma-se em reportagem e reflexão que rompem as referências regionais e se intrometem no país ou irrompem pelo mundo.
Garrett comprometeu-se a ver e a ouvir, a pensar e a sentir e de tudo fazer crónica.
Foi proscrito e exilado mas amou "de um querer bruto e fero".
Foi romeiro num país que queria ver progredir, apesar de reconhecer que Sancho e Quixote "...Tão avessos e tão desencontrados, andam contudo juntos sempre; ora um mais atrás, ora um mais adiante."
Porque todo o texto se constrói com outros textos.
Porque todo o pensamento se enriquece com outros pensamentos.
Permite-me que diga com Garrett como curta é a memória dos povos, hão-de se ir educando à sua custa, talvez ...
O senso comum venha para o milénio... "Está prometido ... como el-rei da Prússia prometeu uma constituição; e não faltou ainda, porque... porque o contrato não tem dia."


«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999