Chavez na presidência da Venezuela
- A esperança e a incógnita

Por Miguel Urbano Rodrigues


Um milhão de pessoas saiu às ruas em Caracas para escutar a palavra do novo presidente, Hugo Chavez (44 anos ), o ex-comandante do corpo de pára-quedistas que anos atrás cumpriu pena de prisão por haver organizado uma tentativa de golpe de estado. Chavez apresentou um programa muito ambicioso durante a campanha. Logo após a tomada de posse anunciou um referendo. Objectivo: convocar uma Constituinte que elabore uma «Carta Magna revolucionária, adequada aos novos tempos». A sua oratória inflamada suscita o entusiasmo das massas. Mas o estilo, populista, justifica também muitas apreensões.

Uma vaga de esperança corre pela Venezuela. É uma esperança torrencial, quente, impregnada de emoção. De repente um povo empobrecido, à beira do desespero, concentrou o seu desejo de mudança na pessoa do novo presidente, que obteve nas urnas uma enorme votação.A maioria dos chefes de Estado da América Latina e do Caribe (incluindo Fidel Castro) esteve presente na cerimónia da posse. A expectativa era enorme.O discurso pronunciado foi recebido com muita euforia pela população, não obstante ser mais adjectivo do que substantivo.
Chavez é um grande orador, na tradição do populismo retórico latino-americano. «Juro perante Deus, juro perante a Pátria, juro perante o meu povo - declarou - que sobre esta moribunda Constituição farei cumprir, levarei adiante as transformações democráticas necessárias para que a República Nova tenha uma Carta Magna adequada aos novos tempos. Juro». Ao alterar a fórmula tradicional provocou a primeira ovação da massa.
A ênfase posta na Constituinte não tem o poder de ocultar a realidade. Chavez obterá no referendo outra vitória. Mas a futura Constituição - se tudo correr normalmente - não entrará em vigor antes de dois anos. Até lá muita água correrá pelo Orenoco.
Nas próximas semanas Chavez será confrontado com uma montanha de problemas. O actual Congresso - Câmara e Senado - é ainda dominado pelos dois grandes partidos da Oposição, os históricos Acción Democrática, e Copei (Democracia Cristã), ambos apodrecidos até à medula. Ora um e outro não se mostram dispostos a aprovar sequer as alterações ao Orçamento reclamadas pelo Presidente e menos ainda o pacote de medidas provisórias por ele anunciadas. As «grandes transformações» constantes do Programa apresentam-se, assim, à partida, como nevoentas.
Na área social Chavez terá nas próximas semanas de encontrar respostas para uma montanha de problemas. Nada menos de l6 contratos colectivos do sector público aguardam renovação. O diálogo com médicos, professores e trabalhadores da Função Publica será particularmente difícil, apesar do crédito de confiança do Presidente, pois as suas reivindicações têm sido sistematicamente ignoradas. São justíssimas. Mas as arcas do tesouro encontram-se vazias. A dívida externa, a quarta da América Latina, é um pesadelo. Este ano, o seu Serviço será de quatro mil milhões de dólares. O défice do Orçamento previsto excede 5 mil milhões de dólares. Onde encontrar todo esse dinheiro ?

Miséria no país da fartura

A situação do país é calamitosa. O desemprego atinge quase 20% da população activa. Metade desta trabalha aliás no sector informal (sem direito aos benefícios da Segurança Social). O salário mínimo, equivalente a l75 dólares, cobre somente 4 5% das necessidades da alimentação de uma família de quatro pessoas. Chavez recordou no seu discurso que 50% das crianças não frequentam a escola e que apenas uma em cada cinco conclui o ciclo básico. A mortalidade infantil é enorme. Dezenas de milhares de adolescentes perambulam pelas ruas como delinquentes.
Paradoxalmente, a Venezuela é um país riquíssimo em recursos naturais. O seu PIB per capita foi durante décadas o mais elevado da América Latina. As reservas de petróleo - segundo Washington - são as maiores do mundo, superando as da Arábia Saudita. As de gás natural ocupam o quinto lugar. O subsolo é também rico em ouro, ferro e minérios raros. No tocante à água doce, somente o Brasil e o Peru ultrapassam a Venezuela. As reservas florestais figuram também entre as maiores do mundo. As terras de aluvião são fertilíssimas e os Llanos uma área ideal para a criação de gado.
Entretanto, neste país de fartura, o povo vegeta na miséria. A percentagem da população que vivia abaixo do nível da pobreza era em l994 de 45%; presentemente excede já os 80%. Nos últimos cinco anos o bolívar perdeu quatro quintos do seu valor. Somente em l998 a Venezuela arrecadou menos sete mil milhões de dólares do que no ano anterior, em consequência da queda dos preços do petróleo. O fosso que existia entre uma pequena minoria de privilegiados e a esmagadora maioria da população aprofundou-se dramaticamente, adquirindo proporções de abismo intransponível.
A Venezuela é hoje, com o Brasil, uma das mais expressivas vitrinas dos efeitos no Terceiro Mundo do neoliberalismo ortodoxo.

Uma personalidade diferente

A personalidade de Hugo Chavez Frias não se ajusta ao figurino dos caudilhos tradicionais. Ele emerge como uma inflorescência. Não repete ninguém. Não creio, porém, que o ajude o facto de a maioria do povo identificar nele «um salvador». A tendência para verem na sua pessoa um político messiânico reforça o seu personalismo. Profundamente religioso, Chavez invoca com frequência Deus em discursos em que assume mais a postura de um pregador iluminado do que a de um homem de estado. Não há motivos para se duvidar da sua integridade pessoal, do seu eticismo e desambição, da sinceridade com que anuncia a vontade de transformar o país, tirando-o do atoleiro. Mas cabe perguntar: como poderá atingir as metas fixadas?
Revistas progressistas da América Latina - como «Siempre», do México, e «Três Puntos», da Argentina - manifestam apreensão relativamente ao voluntarismo do novo Presidente, muito marcado pela sua formação militar e, paradoxalmente, pela sua própria sede de humanismo. A tarefa que assumiu é ciclópica e, obviamente, não será um homem, isolado, que poderá tirar a Venezuela do pântano em que a meteram.
Hugo Chavez gosta de se apresentar como um soldado e, mais de uma vez, esboçou paralelos entre o seu sonho e o projecto e a vida de Simón Bolívar, o Libertador, herói nacional e da América Latina. Não favorece este Presidente carismático a ausência no país de um partido revolucionário com forte implantação entre as massas. A organização que o apoiou em l992 na frustrada tentativa de tomada do poder, o Movimento Bolivariano Revolucionário, mudou posteriormente de nome e passou a chamar-se Movimento V República.
Chavez não se apresenta como socialista. Prefere definir-se como humanista e soldado revolucionário. Ideologicamente não cabe em qualquer molde. Admira Sandino, Zapata, Cardenas, o Che, Fidel, mas numa entrevista recente declarou admirar também Tony Blair e a sua Terceira Via. Através da futura Constituinte pretende revolucionar o sistema político, como condição indispensável para grandes reformas sociais. Nos últimos meses mostrou-se, contudo, muito prudente na abordagem das grandes questões económicas. Prefere privilegiar os temas políticos.
Hugo Chavez teve o seu nome inscrito na lista negra de Washington. Recusavam-lhe inclusive o visto de entrada nos EUA, alegando tratar-se de um golpista. Após a eleição Clinton recebeu-o. Durante anos o seu programa - condensado na Agenda Alternativa Bolivariana - previa reformas de fundo com grande participação, no âmbito de uma frente nacional popular. Tal projecto era obviamente utópico. Antes da campanha ainda prometia rever as privatizações selvagens e criticava duramente a acção das transnacionais. O discurso hoje é mais prudente. Chavez critica a globalização neoliberal e os seus efeitos devastadores. Mas as privatizações serão mantidas e as grandes empresas estrangeiras convidadas a investir nopaís. O seu campo de intervenção é, registe-se, limitado.
O que impressiona negativamente os críticos, numa perspectiva de esquerda, é o contraste entre a ambição do discurso e a realidade, ou seja a impossibilidade de concretizar aquilo que anunciava num horizonte de esperanças. Chavez sabe que o grande império vizinho o mantém em observação. Significativamente, o representante de Clinton na tomada de posse, Richardson, lamentou que o novo presidente tivesse condenado o bloqueio a Cuba no seu discurso, e, noutra grosseira ingerência, qualificou de dramática a ideia de convocar uma assembleia Constituinte. O Polícia do Mundo apressou-se a advertir turbulento ex-para-quedista eleito Presidente da Republica da Venezuela. «Se ser populista é estar preocupado com o povo, sou populista» - afirmou Chavez em resposta a certos críticos. Nas últimas semanas aprendeu, certamente, muito sobre os mecanismos do Poder. Somente a prática da vida poderá, contudo, ensinar-lhe que um homem, por mais dotado que seja, não consegue, independentemente das suas intenções, transformar, isoladamente, um país e menos ainda um país imperializado.

O que vai acontecer na Venezuela? A extrema gravidade e complexidade da crise e os efeitos da presença hegemónica dos EUA desaconselham previsões.


«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999