A TALHE DE FOICE
Homenagem
de Judas
José Luís Judas, na sua condição de presidente da Câmara de Cascais, propôs à edilidade local uma homenagem ao Almirante Manuel Pereira Crespo, atribuindo o seu nome a uma rua e erguendo-lhe um monumento. A estranheza da proposta coloca-a o próprio Judas, logo no segundo parágrafo: «Ministro da Marinha no último governo da ditadura derrubada pelo 25 de Abril, poderá parecer um contra-senso propor esta homenagem». Mas, «com efeito, assim não é». E Judas diz por quê: «O Almirante Manuel Pereira Crespo, pelas suas posições, quer como militar, quer como humanista esclarecido, soube, de forma brilhante, conciliar os seus compromissos políticos com um elevado sentido de camaradagem, não consentindo, em caso algum, denunciar oficiais que sabia, por conhecimento pessoal ou através de informações da polícia política, envolvidos em movimentos democráticos organizados na Marinha, desde finais dos anos sessenta ou, anos mais tarde, no Movimento dos Capitães».
Ou seja, em
substância e segundo Judas, o seu Almirante merece pública
reverência pelo simples facto de nunca ter sido bufo, o que
coloca um dilema: a generalidade dos munícipes de Cascais
também nunca se dedicou a tal prática, o que, em teoria,
perfila dezenas de milhares de nomes com direito a uma rua.
Então por quê escolher o Almirante e ignorar o resto dos
moradores que são praticamente todos?!...
Por exclusão de partes, é forçoso presumir que a escolha de
Judas teve por critério algum mérito singular do seu eleito,
não verificado em todos os outros cidadãos de Cascais.
Ora a singularidade
que se vislumbra no senhor Manuel Pereira Crespo é ter sido,
além de Almirante, Ministro de Marcelo Caetano. Pelo que os
cidadãos de Cascais - incluindo os da maioria que elegeu José
Luís Judas - podem tirar o cavalinho da chuva: apesar de nunca
terem sido bufos, mau grado poderem reivindicar que também eles
sabem «conciliar os seus compromissos políticos com um
elevado sentido de camaradagem» ou, mesmo, que há entre
eles toneladas de «humanistas esclarecidos», com
este presidente da Câmara nunca hão-de ter hipótese de ser
perpetuados na toponímia ou pelo cinzel. Faltar-lhes-á, sempre
e irremediavelmente, a dupla condição de Almirantes e Ministros
do fascismo.
Talvez para blindar a argumentação, como se vê, algo
vulnerável da proposta, Judas não se ficou por aqui e aduziu um
mérito outro: a capacidade do seu homenageado em continuar um «afável
relacionamento» com os oficiais de Abril que provocaram «politicamente
o seu afastamento».
Em tal quadro,
tememos que o presidente da Câmara de Cascais, no uso da sua
estabelecidíssima versatilidade, decida reconhecer beatitude
nesta aptidão do seu homenageado em continuar afável com quem o
saneou. Se assim for, estamos sob o risco de ver Judas a
aproveitar a próxima visita do Papa ao nosso país, para lhe
propor a beatificação do Almirante...
Finalmente, e a rematar o postulado da sua proposta, Judas
considera que «relembrar o Almirante Manuel Pereira Crespo
é prestar homenagem à grandeza moral face à mesquinhez»,
sobretudo quando vivemos «tempos em que os valores morais
podem estar a sofrer alguma erosão ou que a camaradagem deixa de
ser, por razões carreirísticas, sempre de pouca duração na
memória das gentes, valor essencial».
Descontando o
arrevesado da sintaxe, está aqui o Judas carregadinho de razão.
Por este episódio, mais uma vez se confirma que os valores
morais estão realmente em grande erosão. Quanto à camaradagem
ter deixado de ser um «valor essencial» por «razões
carreirísticas», não há margem para duvidar do Judas,
dada a sua qualidade de especialista na matéria.
De tal modo que, por este andar, ainda acaba em estátua. Henrique
Custódio