Caudilhismo eleitoral ?


No «DN» de passada sexta-feira, o sociólogo Manuel Villaverde Cabral publicou um artigo dominado por um imenso deslumbramento com a candidatura de Mário Soares ao Parlamento Europeu e teve a franqueza de explicar que vê nessa intervenção a vantagem de conferir ao federalismo «uma visibilidade e uma legitimidade que não teve até hoje entre nós».
Até aqui tudo bem, ou seja, estamos no território das ideias, concepções e projectos que cada um defende e das correlativas solidariedades, tudo coisas que se podem discutir em qualquer altura.

Acontece porém que, a dado passo do artigo, MVC escreve que «não foi só a AD a atingida pela candidatura» logo acrescentando que «contra a vitória anunciada de Soares, o eleitorado do PCP apenas poderá refugiar-se na abstenção».
Como o autor da singular afirmação não se deu ao trabalho de a justificar, nasceu em nós a exigência de decifrar as misteriosas razões porque alguém acha que a única saída do eleitorado do PCP seria a abstenção.

A primeira hipótese a considerar, seria ou a de imaginar que MVC está a pensar que Mário Soares beneficiará no eleitorado do PCP de uma excepcional admiração ou então que esteja a pensar em votos em presidenciais.
Mas, sobre isto, talvez convenha ter em conta duas coisas : a primeira é que se é sensato admitir que nem todo o eleitorado do PCP solte impropérios ou cortantes desabafos de cada vez que vê Soares ou dele ouve falar, também será igualmente sensato admitir que nem todo o eleitorado do PCP terá propriamente Soares no panteão dos seus afectos; a segunda é que convém não esquecer que, da última vez que Mário Soares foi a votos (presidenciais de 91), quem nele mandou votar foi o PSD, já que o eleitorado do PCP votou muito unido em Carlos Carvalhas que obteve 12,9%.

A segunda hipótese seria o caso inacreditável de MVC se estar a esquecer que, afectos e simpatias à parte, não se vai eleger nenhum Presidente do Parlamento Europeu, não está em disputa um único lugar como nas presidenciais, antes estão em disputa 25 lugares portugueses no PE e pelo sistema proporcional. O que tem como óbvias e indiscutíveis consequências que, com muitos ou poucos votos, Mário Soares sempre só ocupará um desses 25 lugares e que, para o sentar no PE, bastará que a lista do PS obtenha qualquer resultado a partir de 5%.
Ou seja, mesmo quem não ache mal ou até ache interessante que Soares seja eleito para o PE, pode ficar descansado que os resultados garantirão isso, sem ser portanto necessário que alguém abandone as suas tradicionalmente distintas opções de voto centradas nas ideias em que realmente acredita e na força política em que efectivamente confia.

Sinceramente, não gostaríamos nada de ver um intelectual tão atento às questões da cidadania como MVC desembocar, por causa do soarismo e do federalismo, na inadvertida defesa de uma espécie de caudilhismo eleitoral.
Um caudilhismo eleitoral erguido na base da deturpação da natureza das eleições de 13 de Junho e fomentado para, em nome de Soares e em pretenso nome de Portugal ou da Europa, dar ao PS a cabazada de votos que ele usaria em Portugal para aquilo que Manuel Villaverde Cabral muito bem sabe e muitas vezes tem criticado. — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999