MORDOMOS
e amos


Sobre Richard Butler já muito se escreveu. Um outro mordomo (butler em inglês) está de serviço nos Balcãs. William G. Walker é o chefe da "Missão de Verificação no Kosovo", teoricamente ao serviço da OSCE para verificar o respeito por acordos de pacificação daquela província jugoslava. O norte-americano Walker celebrizou-se em meados de Janeiro ao aparecer na aldeia de Racak, perante algumas dezenas de cadáveres, acusando de imediato a polícia sérvia de cometer um massacre. Walker não teve dúvidas, nem precisou de qualquer averiguação. O mesmo não se passou com o correspondente do jornal francês Le Monde (21.1.99), que admitiu a possibilidade de se estar perante uma encenação macabra, em que os corpos de separatistas kossovares caídos em combate haveriam sido recolhidos num único local para simular a ocorrência duma matança a sangue frio. Walker voltou à carga de forma bizarra, ao discursar no funeral colectivo dos mortos de Racak, falando em "crime contra a Humanidade", e afirmando: "o Diabo visitou Racak e a vida foi totalmente eliminada" (Público, 12.2.99).

Mas quem é, afinal, William Walker? Walker foi Embaixador dos EUA em El Salvador entre 1988 e 1992. Eram os anos da guerra. Uma guerra em que os EUA apoiaram o governo e os militares salvadorenhos, de quem o Relatório de 1993 da Comissão da ONU para a Verdade diz: "as forças militares, apoiadas pelo Governo e pelo establishment civil foram claramente os principais perpetradores de massacres, execuções, torturas e raptos durante a guerra civil. Estes actos não podem ser imputados aos excessos da guerra, mas antes a decisões de matar, premeditadas e ideologicamente inspiradas". Ao lado dos assassinos governamentais combateram, discretamente, tropas dos EUA. Walker, discursou numa cerimónia em memória de 21 soldados estado-unidenses que morreram em combate no El Salvador (noticiado pelo Washington Post, 6.5.96). A guerra generalizou-se após os grandes massacres de 1980 e o assassinato do Arcebispo Oscar Romero, que se insurgira contra a repressão e exigira aos EUA que cessassem o auxílio militar ao exército salvadorenho. O mandante desse assassinato foi Roberto D’Aubuisson, convidado por Walker em 1989 para participar na festa que a sua Embaixada ofereceu por ocasião do dia nacional dos EUA (citado no livro Killing Hope, de W. Blum). Foi durante a missão de Walker em El Salvador que foram assassinados pelos militares seis padres jesuítas. Comparem-se as declarações actuais de Walker com as que proferiu então (recolhidas por The Consortium, 26.1.99): "problemas de controlo de gestão existem em situações como esta"; "não estou a justificar, mas em alturas destas, de grande emoção e grande perigo, coisas deste tipo acontecem"; "qualquer pessoa pode obter uniformes, o facto de [os assassinos] vestirem uniformes militares não prova que tenham sido os militares". Walker aparece também envolvido no escândalo Irão-Contras. O seu nome é mencionado mais duma dúzia de vezes no relatório da comissão oficial de inquérito sobre essas actividades do Governo Reagan, que violava secretamente uma proibição parlamentar de financiar os Contras nicaraguenses - outro bando de assassinos e massacradores de civis inocentes. Afinal, o "bombeiro" da OSCE é um pirómano profissional...

Os mordomos existem para servir os seus amos. Walker não tem dois pesos e duas medidas. Tem apenas o peso e a medida dos seus amos. E o objectivo dos amos de Walker já nem sequer é muito dissimulado: arranjar forma de meter tropas da NATO na Jugoslávia, um país soberano que não quer lá tropas estrangeiras. A fabricação de actos que "justifiquem" as suas agressões não seria novidade para o Governo dos EUA. A manipulação de organizações internacionais para esse fim também não. E a utilização de chacinas - reais ou apenas mediáticas - para "justificar" intervenções estrangeiras no conflito jugoslavo vai-se tornando terrivelmente banal.

Lembram-se de quando a NATO era uma "aliança defensiva", necessária por causa da "ameaça russa"? A "ameaça" onde está? Mas a NATO vai ter novos membros para o mês que vem. E as tropas dos EUA instalam-se (para ficar) em cada vez mais zonas do globo, do Médio Oriente aos Balcãs. A agressão contra países soberanos, fora de qualquer legalidade internacional, está-se a tornar prática corrente. É isto o imperiali$mo. — Jorge Cadima


«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999