Variantes
Centenário de
António Aleixo


Passa hoje, dia 18 de Fevereiro, o centenário de nascimento de António Aleixo. No próximo mês de Novembro, no dia 16, perfazem-se 50 anos sobre a sua morte. O ano de 1999 apresenta-se pois como especialmente apropriado para a evocação da memória e da obra ímpar do grande poeta algarvio.
A ideia de se realizar este ano um Congresso sobre António Aleixo foi mesmo lançada há dias, em Vila Real de Santo António, terra do nascimento do poeta. A sugestão partiu do Prof. Vilhena Mesquita, Presidente da Associação de Jornalistas e Escritores do Algarve (AJEA), no concorrido acto de lançamento do livro de poemas de Neurónios flutuantes, de José Cruz, antigo deputado e eleito municipal do PCP.
As comemorações do centenário do autor de Quando começo a cantar podem juntar-se muito bem às grandes celebrações dos 25 anos do 25 de Abril.

Foi o Dr. Joaquim Magalhães, grande divulgador da obra de Aleixo, que, depois de lembrar que as edições de Este livro que vos deixo... lançadas em 1969 e 1970 ocuparam o primeiro lugar nas vendas e se esgotaram, salientou num prefácio de 1975: «Cremos que lhe deve ser reservado lugar cimeiro no processo de formação do Portugal novo».
António Aleixo viveu, na verdade, grande parte da sua vida adulta sob a ditadura fascista e nas injustíssimas condições sociais por ela conservadas e agravadas.
Foi guardador de rebanhos, vendedor de cautelas, cantor popular de feira em feira, debatendo-se em largos períodos da vida com a extrema pobreza e a doença.
A sua poesia exprime, naturalmente, esta duríssima situação pessoal, por exemplo, quando nos diz: A vida é uma ribeira;/ caí nela infelizmente.../ hoje vou, queira ou não queira,/ aos trambolhões, na corrente. Ou em quadras onde perpassa a sua experiência de pobre: A esmola não cura a chaga;/ mas quem a dá não percebe/ que ela avilta, que ela esmaga/ o infeliz que a recebe.
O poeta ergue-se contudo acima desta condição pessoal para olhar à sua volta e pensar o mundo: Eu não tenho vistas largas,/ nem grande sabedoria,/ mas dão-me as horas amargas/ lições de filosofia.
É assim que Aleixo observa e denuncia, com raro sentido de classe, as grandes injustiças sociais da sociedade que o cerca e que nos cerca ainda hoje: Quantas sedas aí vão,/ quantos brancos colarinhos,/ são pedacinhos de pão/ roubados aos pobrezinhos. Ou levando a crítica ao fundo da sociedade capitalista: A ninguém faltava pão,/ se este dever se cumprisse:/ - ganharmos em relação/ com o que se produzisse.
O poeta percebe que para que isso aconteça é necessário esvaziar os balões da mentira e da demagogia com que povo é enganado. Por isso sentencia: Só quando a hipocresia/ cair do seu pedestal,/ nascerá, dia após dia,/ um sol p´ra todos igual.
O poeta também percebe que a construção de um mundo melhor depende da atitude de cada um de nós, daí a exortação: O mundo só pode ser/ melhor do que até aqui/ - quando consigas fazer/ mais p´los outros que por ti!
Tanto como a mais profunda injustiça social, a repressão política era outra das circunstâncias dominantes no país, sob a ditadura fascista. Por isso ele também denunciou a insensatez dessas práticas autoritárias: Anda, a galope ou a trote,/ uma besta à chicotada;/ mas, dos homens a chicote,/ ninguém pode fazer nada.
No entanto, conhecendo os custos da luta contra a opressão, advertiu: Que importa perder a vida/ em luta contra a traição,/ se a Razão, mesmo vencida,/ não deixa de ser Razão?
Sabe-se que António Aleixo era meio analfabeto. Lia e parece ter lido alguns bons livros que ajudaram as suas lições de filosofia, mas escrevia com dificuldade. Julgo, no entanto, que das poucas exemplificações que atrás deixei ressalta, claramente, a par de um conteúdo repassado das mais elevadas aspirações sociais, a justeza e o rigor da linguagem, a força dos conceitos, a eficácia das imagens e sobretudo a forma lapidar dos seus versos.

Bem merece ser lembrada, estudada, valorizada e celebrada esta rara inspiração poética que se afirmou, mesmo nas mais desfavoráveis condições sociais e culturais, com tanta força e beleza!


«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999