Assim vai a televisão
Por Francisco Costa
Anda uma pessoa aí pela rua e, na voragem
da correria, nem repara nas centenas e centenas de mensagens que,
parecendo à primeira vista inofensivas ou terem sido ali
colocadas com inocente intenção, acabam por se insinuar como
verdades absolutas ou por se transformar, às vezes, em
declarações de princípio definitivas, acima de qualquer
suspeita ou contestação e não deixando margem para discussão.
Por exemplo, na última semana, dei comigo a topar, com uma
insistência para além do suportável, com três caras
conhecidas de personalidades das mais poderosas deste país (não
estou a brincar!) cujas intenções naquilo que era a
reprodução e ampliação da capa de uma revista de propaganda
televisiva colada num placard de publicidade eram
sinteticamente resumidas a três significativas citações.
Em relação a uma dessas personalidades, Emídio Rangel,
a frase citada não enganava e, traduzindo com tão exemplar
clareza o que lhe vai no espírito, não merece que dela nos
ocupemos com demasiadas delongas. Dizia a frase:«quando não
há competição, inventamo-la!», ou seja, a expressão mais
adequada para traduzir toda uma filosofia de vida, aliás,
inteiramente correspondente a muitos dos tiques da estação que
o mesmo dirige: a de que os fins justificam os meios.
Uma segunda personalidade presente na capa da revista era José
Eduardo Moniz, conhecido por ter sido um dos principais
responsáveis pela completa descaracterização da RTP
como serviço público de televisão e de (aparentemente sem
sequer fazer qualquer sacrifício em dar vários tiros nos pés)
assim ter degradado a estação, a ponto de ela estar mais
«preparada» para enfrentar a concorrência da televisão
privada...
Hoje, Moniz tornou-se, com o êxito que se sabe,
responsável da programação da TVI, agora praticamente
esvaziada de produção própria e praticamente transformada em
canal de transmissão (aos sábados e domingos em sessões
contínuas) de filmes e telefilmes de quinta categoria. E o tal Moniz
era, então, citado a dizer: «gostaria que fossemos a TV
surpresa». Assim, sem mais nem menos!
Deixei para último lugar, a personalidade hoje em dia de maior
responsabilidade na estação da 5 de Outubro. Maria Elisa
era citada a afirmar, aparentemente sem estremecer, «não
abdicamos da dignidade e da qualidade» - isto quando toda a
gente já há muito se apercebeu do tremendo fracasso que
continua a ser a insistência suicida numa programação
caríssima que, a nível da RTP 1 (apesar do fausto e da
ruideira desmesurada de certas produções para encher o olho e
dos continuados resquícios de piroseira e péssimo gosto) não
consegue competir com a concorrência, numa estratégia sem
qualquer rentabilidade visível em termos de audiências. Com a
agravante de a principal consequência ter sido a atribuição
exclusiva à RTP 2 de certas características de
«televisão de referência» que deveriam ser estendidas
harmoniosamente aos dois canais e não transformando esta última
num gueto de programação dita de maior qualidade e, portanto,
estreitando uma faixa de espectadores que poderia e deveria ser
mais alargada.
Mas será isto mesmo assim? Estará a RTP 2 isenta de
absurdos de programação? Bom, para além daqueles que aqui
temos apontado em ocasiões anteriores, sobressai hoje o que se
refere ao critério de escolha de certas séries televisivas.
Por exemplo, dei comigo anteontem a ver uma série apresentada
como sendo das mais espectaculares dos últimos tempos. Chama-se
ela «Nash Bridges», já vai na sua quarta temporada nos
EUA, e conta-nos as peripécias de um grupo de acções especiais
da polícia de S. Francisco (o SIU, Special Investigators Unit)
e do seu mais destemido inspector, o tal Nash Bridges que dá o
nome à série, interpretado pelo inefável Don Johnson (Miami
Vice, entre outras mistelas).
Trata-se de um exemplo notório do nível primário a que hoje
chegou a fabricação em série deste tipo de produtos
televisivos nos EUA. Particularmente significativa é a
circunstância (à primeira vista contraditória) de se poder
constatar como o progresso de evolução tecnológica neste
domínio tem nivelado por baixo e determinado uma
estandardização de processos técnicos e de dispositivos
dramatúrgicos que, com maior ou menor rasgo, se generalizaram à
produção das várias séries com consequências
decisivas na banalização do modo de produção da indústria
cinematográfica e no próprio modo de fruição do audiovisual
em geral.
Por exemplo, como é patente em «Nash Bridges», a
maleabilidade da steady-camera, ao tornar corriqueiros os
mais complexos movimentos de câmara, contribuiu
objectivamente para impedir os rasgos de transcendência da mise-en-scène
de qualidade. Também a filmagem de determinadas cenas com
intensidade de diálogo em campo-contra-campo através da
utilização de várias câmaras em simultâneo, obviando por um
lado o risco do raccord falhado, não deixou de
empobrecer, com a linearidade «naturalista» da escrita
televisiva daí resultante, a especificidade da própria
montagem, enquanto decisivo factor criativo. E o abuso da chamada
câmara lenta nas cenas de acção, impediu o efeito de
tensão dramática que a sua utilização excepcional estava
destinada a provocar.
Que alguém tenha decidido, conforme veio a público, transferir
agora esta série para a RTP 1, é significativo de que
houve grave equívoco ao programá-la para a RTP 2. Mas a
sua própria transferência para a RTP 1 não deixa
também de ser significativa de outra perversão: a de que é
para ali que deve continuar ir o lixo televisivo!
Face a isto, como é possível ninguém ter reparado na
enormidade que era aquele slogan na semana passada
abundantemente transmitido no spot da RTP a
propósito da cobertura do Congresso do PS, e que rezava
assim: «RTP, sempre que é preciso, uma televisão a sério»!!!