A Europa: rever matéria dada(')
Por Sérgio Ribeiro
Um personagem
de «O quarteto de Alexandria», a obra-mestra de Lawrence
Durrell, dizia que a Europa era como um positivista lógico a
tentar provar a si próprio que existia.
Mas... que Europa? O continente?, enquanto entidade geográfica,
histórica, política, cultural?
1. Geograficamente, são indefinidos os
limites da Europa e móveis as suas fronteiras. Do Atlântico aos
Urais, como de Gaulle dizia e hoje se repete? Eurásia, como a
União Soviética a prolongou? Euráfrica, como o seu berço
mediterrânico o impõe?
Histórica e politicamente, tem a Europa um contributo
civilizacional específico. Com as macro-estruturas e o
expansionismo. Grécia e as cidades, Roma e o império, os
Estados-nações. Desde a descoberta de caminhos marítimos para
comerciar especiarias e escravos, para espalhar a fé e o
império... europeu.
Culturalmente, há o mal-confessado etno-eurocentrismo. A
pretensiosa e colonizadora superioridade cultural que passa da
pesporrenta exportação de modas e modelos à alegrinha
submissão à coca-colonização.
Mas é desta Europa - geográfica, histórica e política,
cultural - que se fala quando de Europa se fala?, é desta Europa
de que somos, indiscutivelmente, o rectângulo sudoeste, o
Estado-nação que mais "mundos" lhe deu, o maior
miscigenador e, por isso, o povo culturalmente mais viva e
perenemente europeu?
Não! Falamos de uma organização de Estados europeus, que
começaram por ser 6, e que formaram a Comunidade Económica
Europeia, há 40 anos, que foi alargando e mudando do nome, e
que, hoje, são 15, se chama União Europeia e está a preparar,
penosamente (sobretudo para os do costume) o próximo e o mais
difícil de todos os alargamentos.
2. Que prioridades e caminhos teve
"estoutra Europa" de que se fala quando se fala de
Europa?
As prioridades começaram por ser, claramente, sem ambiguidades,
de natureza económica: criar uma união aduaneira, definir uma
Política Agrícola Comum (PAC). Os caminhos foram os que
cumpriram essas prioridades, sucessivamente adaptados - as
prioridades e os caminhos - à evolução das realidades e aos
alargamentos sucessivos do número dos Estados-membros.
A união aduaneira "a 6" passou a mercado interno
"a 12" e a UEM "a 15" (que, afinal, são só
11); a PAC passou de política de solidariedade e preferência
comunitária, no sentido da suficiência alimentar (ou de menor
dependência) a gestão egoísta e produtivista dos excedentes,
destruindo estruturas de aproveitamento local e nacional de
recursos, isto é, criando e agravando situações de
dependência alimentar.
Estas são as prioridades que se impuseram e os caminhos que se
percorreram.
3. Porque assim se decidiu em gabinetes
eurotecnocráticos ou porque o senhor Jean Monnet, com Schumann e
outros parceiros, assim o delinearam?
Não! Porque assim o determinaram as relações sociais
profundas. Porque "estoutra Europa" é uma resposta
de classe a situações e evoluções objectivas.
Mas aconteceu assim, linearmente, como quem sobe uma escada
de degraus todos iguais? Claro que não. Os degraus são de
alturas desiguais, uns descem em vez de subirem, outros estão
partidos, há patamares. E há, sempre, alternativas.
Porque, sendo uma resposta de classe, esta "Europa"
constrói-se no contexto de uma permanente, mesmo quando está
escondida ou é escamoteada, luta de classes.
4. Que prioridades e caminhos para o futuro?
Com uma moeda única, um banco central único, as prioridades
únicas e os únicos caminhos terão mesmo de ser a
fiscalidade única, o governo económico único, a criação de
um Estado Federal que apague os chamados interesses e egoísmos
nacionais, que acabe com os Estados-nações como se fossem meras
obsolescências?
Serão esses, inevitavelmente, os degraus seguintes?
Lutamos para que sejam outras as prioridades e outros os
caminhos.
A vertente económica, melhor dizendo, financeira, não é a
única da complexa realidade, tudo reduzindo a produtividade e
competitividade medidas em acumulação de capital financeiro
cada vez mais desproporcionado relativamente às necessidades da
economia real de que o dinheiro deveria ser - para isso nasceu! -
mero instrumento.
5. As prioridades discutem-se e
não há caminhos, os caminhos fazem-se ao andar ainda que,
antes, se devam pensar os passos a dar para que haja caminho.
A vertente social, e com ela a ambiental, é para nós
fundamental. Quando, em 1986, o Acto Único abriu a passagem ao
mercado interno e à União Monetária, também se forçou a
definição do objectivo da coesão económica e social.
Não aceitamos a coesão económica e social como subalterna,
subsidiária, não nos resignamos a uma "construção
europeia" que se baseie em médias, ignore o agravamento de
desigualdades e assimetrias, a dispersão salarial e o crescente
desequilíbrio na repartição dos rendimentos, encare o
desemprego como fatalidade estrutural, a exclusão como destino
para cada vez maior número.
Política e institucionalmente, lutamos contra o reducionismo
federalista. Em vez de harmonização e unificação para todos
sermos padronizados, defendemos firmemente a solidariedade e a
cooperação entre diferentes.
Não se pode permitir que levem - ainda mais - o poder
institucional para a Comissão em Bruxelas e o BCE em Frankfurt. O
poder institucional, democrático, constrói-se aqui, à mão e
à vista das pessoas. Aqui, a pedir contas ao governo -
também! - pelo que faz e deixa fazer em Bruxelas e Frankfurt,
escolhendo e exigindo trabalho (e contas) aos deputados que nos
representam e vão para, perdão!..., que reúnem em Bruxelas e
Estrasburgo.
Sobre a vertente cultural não se tem avançado muito. Tem sido
dimensão ignorada, esmagada ou ""folclorizada".
Nada confirma (nem seria coerente com o personagem) que Jean
Monnet tenha dito que, se voltasse atrás, iniciaria a
"construção europeia" pelo lado da cultura, mas é
uma boa proposta de reflexão. Não como construção "pelo
telhado" superestrutural, mas como expressão de respeito
por identidades e especificidades, valorizando-se no confronto e
na convivência.
6. Por último, para fazer pontes para o
debate de ideias e projectos que deveria ser a campanha (e a
mobilização para o voto), chama-se a atenção para o Apelo
Comum - por um novo rumo da construção europeia,
documento assinado em Novembro último por 13 partidos de 12
países da Europa propriamente dita (pois inclui a Suíça e
Chipre).
Esse documento, definindo linhas gerais de prioridades e caminhos
para uma "Europa social e ecológica, democrática,
solidária e de paz", está em discussão e aberto.
Leiam-no, camaradas, e recusem que as eleições para o
Parlamento Europeu venham a ser uma fraude por se reduzirem a uma
escolha entre um Mário (que conhecemos bem...) e uma Leonor (e
bom seria que não tivesse havido o que a torna tão
conhecida...), com tudo o resto a fazer de paisagem e figurantes,
com animação por um "folclore" de esquerda
oportun(ist)a para tirar votos a quem os portugueses tanto
precisam que nenhum voto perca.
Atenção: são 25 os deputados a eleger e não só os
cabeças de lista!
(') - Notas, ligeiramente alteradas (ou adaptadas a texto corrido), para um dos debates do ciclo Portugal 2000, realizado em Coimbra, a 22 de Fevereiro de 1999.