Crónica
A loja dos dez mil


Talvez o mal fosse Guterres ter sido tão peremptório quando, ao ganhar as eleições e formar governo, ter dito que não ia haver jobs for the boys. Disse-o em inglês, a ver se muita gente não percebia de que se tratava precisamente de não haver empregos para a rapaziada. Se o afirmasse em português, a generalidade dos eleitores, não familiarizados com a língua de Blair e de Clinton, receariam que afinal o seu voto tivesse sido deitado ao lixo e que o governo do PS, tão de esquerda e tão católico, afinal não queria saber da questão do desemprego para nada. Nas hostes do PS, porém, logo grande vozearia se levantou. Não só percebiam perfeitamente o que em inglês dissera o Primeiro Ministro, como entenderam o recado - a política praticada por Cavaco, distribuindo lugares e tachos pelos apaniguados do PSD ia ter um fim. E afinal por que se tinham batido eles, socialistas de primeira apanha - os de segunda nem ligaram, pois haviam feito longo caminho «ideológico» de aproximação ao tacho - se não houvesse distribuição de benesses?
Por entre a gritaria de um PSD ofendido e de um PS a ver-se preterido na «política» dos lugares, lá se foi descortinando que era tudo conversa. No poder, após largo jejum, a fome era muita. E se a maioria era relativa, a vontade era absoluta de fartar. Ao longo dos meses e de poucos anos, foi-se vendo que as coisas não eram bem assim como Guterres dissera em inglês e bastas vezes as oposições - e os comunistas nomeadamente - denunciaram os jobs que escandalosamente o Governo distribuía pelos seus boys e pelos seus novos amigos que haviam escolhido a «transição de esquerda» para o... capitalismo. Comissões, grupos de «trabalho», direcções, gabinetes, assessorias, as escadinhas e os nichos do poder foram sendo preenchidos pelo enxame socialista. Até nas câmaras municipais cor de rosa. Uma delas, a de Cascais, onde o convertido Judas criou ninho, foi tão longe na criação de lugares bem pagos que ficou conhecida por... loja dos trezentos.
Mas a contabilidade que fez recentemente escândalo não se ocupou de câmaras. Foi ao cerne do poder, quer-se dizer, ao Governo. O insuspeito «Diário de Notícias» investigou. Com base, segundo afirma, «numa exaustiva leitura do "Diário da República"», o jornal dirigido por Bettencourt Resendes, fez as contas e concluiu que, em três anos, o PS deu jobs a dez mil! Só até 13 de Novembro do ano passado, momento em que o «investigador» terá terminado a leitura exaustiva, o Executivo de Guterres havia feito 9714 nomeações, «distribuídas da seguinte forma: 3472 em comissões e grupos de trabalho, 4954 em funções de direcção e afins e 1288 nos próprios gabinetes de membros do Governo»!
E revela o DN que, «só no que se refere a nomeações directamente assinadas pelo Primeiro Ministro, a cifra ultrapassa já o meio milhar. António Guterres nomeou 230 boys para comissões ou grupos de trabalho, 272 para cargos directivos do Estado e 63 elementos para o seu gabinete».
Olha se ele não tem dito nada? Se, em vez de prometer que não ia haver jobs, houvesse omitido a tão incómoda frase?
Mas não adianta ir perguntar ao passado como teria sido se assim não houvesse acontecido. Nem valerá arranjar desculpas para a desastrada frase ou para a escandalosa prática que a desmentiu. Muita gente ainda se lembra que Guterres não tem jeito para os números, dir-se-ia. Ou: afinal não se trata propriamente de boys, mas de gente já crescidinha, Guterres não iria fomentar o trabalho infantil, já basta deixá-lo andar proliferando.
O que pode uma vez mais concluir-se é que a diferença é grande entre o que Guterres diz e o que faz. Como escrevia na passada semana, nas páginas do nosso jornal, o camarada Jerónimo de Sousa, «para o Governo importa dar mais relevância ao estilo do que à substância política. Acima de tudo, importa-lhe que os trabalhadores retenham o que parece e não aquilo que é».
Mas a diferença entre o discurso e a prática vai-se alargando à medida que a prática avança. E Guterres não se coíbe, mesmo, de fazer discurso «de esquerda», para português ouvir ou inglês ver (ou para calar os alegres companheiros que gostariam de um discurso mais «socialista» a cobrir a nudez feia da política de direita).
Então não foi ainda há pouco, no congresso-espectáculo do PS, que Guterres, o chefe de um governo que recebeu o aval dos grandes capitalistas mesmo antes de tomar posse e tem cumprido à risca o que lhes prometeu, teve o descaramento de «indignar-se» com a concentração da riqueza, no mundo, às mãos de poucas centenas de grandes fortunas?
Mas o discurso vai continuar e promete vir a ser mais colorido, à medida que as eleições se aproximam. Já nele cairam alguns, amaciados com palavras de «esquerda» e com o respectivo pagamento, como de resto o trabalho publicado no «Diário de Notícias» não deixa de salientar. Continuarão as piscadelas de olho. Até parece que a moda pegou de afirmarem alguns destacados membros do PS que o PCP «não tem lepra». Pois não tem. O PS não a terá também. O que tem lepra é a política de direita. E o contágio pode ser fatal. — Leandro Martins


«Avante!» Nº 1318 - 4.Março.1999