Eles andam por aí


– Não sou espantalho! Não sou espantalho! Na carruagem do Metro, a voz feminina soou clara. Não como uma agressão ou uma defesa. Mas uma afirmação plena, de pessoa.

A mulher tinha a mão direita apertada no varão e segurava um saco com a esquerda. Olhava intensamente para um homem de sessenta e tantos anos, de fato e gravata. Um dos tais senhores arrogantes e bem postos que circulam ainda na cidade de Lisboa. Estava hirto, encostado ao separador, junto da porta. Olhava fixamente para o exterior, o Metro seguia o seu destino para o Saldanha e, então, ele murmurou outra frase, repetiu-a até, baixo e duro, para ela ouvir.

– Vai para a tua terra...

Ela não se ficou. Olhou firme as suas costas ostensivamente voltadas, o seu fato inteiro e escuro, e respondeu:

– A minha terra não é para aqui chamada. Nesta terra tenho o direito de trabalhar e é cá que trabalho. Não tem nada com isso.

O homem puxou e repuxou as luvas que tinha já bem enfiadas nas mãos. Foi quando o jovem, ao seu lado, entrou na discussão, dizendo que estava de acordo com ele:

– São de África, são de África. Façam lá a vossa vida.

Iam mais pessoas de África na carruagem. Iam pessoas de Lisboa e de outros lados do país, e ninguém mais se meteu. A mulher voltou a dizer, firme e corajosa:

– Não sou espantalho e tenho direito a viver e a trabalhar aqui. E não quero mais conversa.

Perto dela, outra mulher, mais velha e com um rosto quase severo, ouvia e via tudo. OMetro parou, a mulher corajosa e digna saiu e, depois de a porta fechar, ela falou:

– Não gostei nada do que disse, ouviu?

Falava com o homem de fato e gravata, hirto, ainda a repuxar as luvas para nada.

– Não gostei – voltou a mulher a dizer-lhe, em voz alta, para se ouvir como devia ser. – Tenho um filho que nasceu em África e tem tanto direito como o senhor a viver aqui.

Ponto final, parágrafo. Um rosto quase hermético, agora sulcado de rugas. Uma mulher das que não se calam. A viagem decorreu, um homem branco olhou para um homem negro que estava defronte dele, ambos sentados nos bancos, encolheram os ombros e sorriram. Mas as coisas não ficaram por ali. Cada um levou as suas dúvidas, as suas dores, o medo que se espalha na vida das pessoas, a competição, o ódio. E a coragem de resistir, de continuar a construir a cidadania, assim, como aquelas duas mulheres, face ao homem velho e do passado, o retrato típico do fascista de antigamente, bem posto, de gravata e luvas, e face ao jovem que o apoiou porque, se calhar, não tem trabalho ou teme não vir a arranjar emprego.
Está tudo misturado, como este povo de mil proveniências e viagens. Onde estão o passado, a ignorância e o pesadelo estão logo vozes de libertação, de defesa e imposição clara de direitos adquiridos.
Ultrapassa-se, assim, a democracia formal em que nos querem adormecer. Eles, o passado e os já mortos na alma e no sonho, andam por aí. Elas, as vozes da coragem e da luta, também estão aí, bem no coração da cidade e do futuro. — Modesto Navarro


«Avante!» Nº 1318 - 4.Março.1999