Os «anos de ouro» da televisão
Cansado de tantas e tantas horas de lixo
televisivo, confesso que me preparei com grande antecedência
para assistir refastelado à projecção, na RTP 1, de um
dos últimos «Lotação Esgotada» - precisamente aquele
em que era transmitido «O Último Imperador», de Bertolucci.
Claro que eu já sabia que o esplendor visual do filme,
reforçado pela fabulosa direcção de fotografia de Vittorio
Storaro, não se compadecia com os limites estreitos da
pequena caixa televisiva. Mas era-me difícil acreditar que, a
seguir ao genérico do filme, tudo se fosse tornar ainda mais...
pindérico: através do famigerado processo pan & scan,
o formato cinemascope estreitava-se, ainda mais, de 16 x 9
para 4 x 3, provocando criminosos cortes laterais no quadro da
imagem e suscitando movimentos de «panorâmica» não previstos
pelo autor do filme.
Espantoso é que estes atropelos (como tantos outros em muitas
outras áreas das artes e da cultura) se continuem a passar -
anos a fio, direcções de programas a fio, administrações a
fio, secretários de estado a fio, parlamentos a fio! - no
chamado «serviço público» de televisão. Como se estes
assomos de desprezo totalitarista pela integridade das obras de
arte e pelos direitos de autor não relevem, também, da esfera
do «político»!
Mas, mais espantoso ainda, é que, num dos últimos programas da
série «O Meu Cinema» (agora na RTP 2), uma
personalidade com o estatuto e as responsabilidades intelectuais
e institucionais de João Bénard da Costa se não tenha
dado ao trabalho de visionar previamente a cópia do filme que
iria ser transmitido nessa noite - «Cruel Vitória» (Bitter
Victory), de Nicholas Ray assim dando involuntária
mas objectiva cobertura a estes atropelos, em vez de verificar
que todas as virtualidades que calorosa e amplamente assinalara
ao mesmo filme iriam ser, nas duas horas seguintes, subvertidas e
estropiadas, precisamente pelo mesmo processo!
Foi a pensar nisto
que tive a feliz oportunidade de assistir, em dois domingos
seguidos, no espaço «Artes e Letras», às duas partes
em que foi dividido um excelente documentário sobre a
personalidade de Rod Serling, um dos mais importantes
expoentes da dramaturgia televisiva dos EUA, a partir dos anos
50.
É que a importância decisiva de Serling não residiu,
apenas, no seu especial talento para escrever imaginativos
argumentos e admiráveis diálogos para as suas peças e séries
de televisão ele jamais deixou de intervir em outras
esferas, como influente contestatário da mediocridade televisiva
que, em geral, grassava no panorama audiovisual do seu país
nestas áreas de expressão artística.
Rod Serling transformou-se, assim, em um dos chefes de
fila de um movimento que, não apenas nos corajosos gestos de
contestação, mas pela própria prática artística, contribuiu
para que os anos 50 e 60 representassem o período de ouro da
televisão norte-americana. Uma época marcada pela enorme
influência de artistas e técnicos, de educação e prática
política e social de tendência liberal, muitos deles saídos
das lutas contra a paranóia anticomunista e a «caça às
bruxas» de McCarthy e quejandos e que coincidiram, em
muitos casos, na passagem do mundo da televisão para o mundo do
cinema embora Serling só muito esporadicamente
tenha escrito para a 7ª. arte, logo se destacando nesse
verdadeiro manifesto anti-guerra-fria que foi «Seven Days in
May», realizado por John Frankenheimer (1964).
São estes tempos, ricos e contraditórios, que admiravelmente
nos mostra o documentário «Rod Serling: Submitted to Your
Approval» - título sugestivo e significativo, tendo em
conta os processos de controlo que os todo-poderosos da
indústria televisiva haviam implantado no sistema - para tal
servindo-se dos depoimentos de muitos seus contemporâneos, hoje
ainda vivos, e de excertos de obras que proporcionaram ao
dramaturgo a conquista de várias e valiosas distinções.
Séries e peças de teatro que ficaram a caracterizar uma
carreira de êxitos de grande impacte público começando
pela sua colaboração em prestigiados espaços do drama
televisivo, como «Kraft Television Theater» (NBC), «Studio
One» (CBS) e, sobretudo, «Payhouse 90» (da mesma
CBS). Destes seus trabalhos, constituem retratos de toda uma
época o estudo psicológico «Patterns» (1956) e os
fabulosos dramas «Requiem Para um Peso-Pesado» (1956),
com uma interpretação notável de Jack Palance, ou «The
Comedian» (1957).
Mas foram sem dúvida os 156 episódios da série fantástica «Twilight
Zone» / «A Quinta Dimensão» (transmitida com
imenso êxito também entre nós, na RTP) que acabaram por
granjear a Rod Serling os mais altos louros, não apenas
pela inovação que ele imprimiu à escrita televisiva mas
também pelo forma como ultrapassava os problemas da censura,
tantas vezes travestidos dos chamados «códigos morais», para
abordar nos seus argumentos, servindo-se dos artifícios da
«ficção científica» e da introdução de personagens, às
vezes pertencentes a «outros mundos», problemas do quotidiano
das nossas sociedades e assim denunciando o totalitarismo, a
guerra, a prepotência, a exploração.
Nesse sentido, como foi amplamente enunciado no documentário por
tantos dos seus participantes, Serling mostrava a sua
opção pelos desalojados, pelos não-amados, pelos rejeitados da
sociedade, estigmatizando (mesmo que simbólica e indirectamente)
a perpetuação das mentalidades nazis e racistas.
Não deixa de ser significativo que este longo documentário
esteja integrado numa série de grande prestígio
intitulada «American Masters» e produzida pela PBS,
a altamente considerada televisão pública norte-americana
uma série que, há mais de uma década, se destina a dar
a conhecer os grandes vultos da cultura e das artes dos EUA. Isto
num país em que a classe dominante e as suas tentaculares
correias de transmissão em todas as áreas são insuspeitas de
nutrir grandes simpatias por tudo o que lhes cheire a «serviço
público» ou a «intervenção do Estado» na esfera política,
económica, social e cultural.
Pelo que, ao ver esta série, não deixo de confirmar a ideia de
que, por cá, a todos os níveis, continuamos a topar com muitos
mais papistas que o próprio Papa. Coisa que, aliás, há muito
se sabia! Francisco Costa