Sérvios bósnios rejeitam
prepotência internacional


O precário equilíbrio que desde 1996 se vive na Bósnia está de novo posto em causa. Desta vez, na origem do problema estão as controversas decisões tomadas na passada sexta-feira pelo catalão Carlos Westendorp, Alto Representante civil para o território, e pelo norte-americano Roberts Owen, presidente da comissão de arbitragem. O primeiro demitiu o Presidente da República Srpska (RS), Nikola Poplasen; o segundo retirou à RS o controlo da estratégica cidade de Brcko e decretou-a «distrito neutro».

A nova tragicomédia que se vive nos Balcãs é elucidativa da paz imposta pelos acordos de Dayton e vigiada nos últimos três anos por um impressionante força de 30 mil soldados da NATO, liderada pelos EUA, acessorada no plano político pelos organismos dirigidos por Carlos Westendorp e Roberts Owen.
Investido de plenos poderes no que à Bósnia diz respeito, Carlos Westendorp parece ter levado desta vez a sua prepotência longe demais ao demitir Nikola Poplasen, um presidente eleito democraticamente há cerca de seis meses em eleições organizadas pela Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). Westendorp classifica Poplasen de «radical» e os «sérvios radicais» de «mafiosos», pelo que se afirma disposto a travar «um braço de ferro» para os afastar do poder. Que para atingir tal objectivo seja necessário fazer tábua rasa da vontade expressa livremente pelo eleitorado da RS não parece perturbar o Alto Representante.
Poplasen recusou aceitar a sua destituição. «Só sairei depois de um referendo através do qual possa ser expressa a vontade do povo», afirmou.
O mais caricato nisto tudo é que a demissão de Poplasen, acusado de bloquear a recondução do «moderado» Milorad Dodik no cargo de primeiro-ministro da RS, não levou ao aprofundar das divergências entre «radicais» e «moderados» como esperava Westendorp. Milorad Dodik demitiu-se em solidariedade com Poplasen, ficando o território sem Presidente e sem Governo. Logo de seguida, a decisão de Roberts Owen de retirar a cidade de Brcko do controlo da RS conseguiu o impensável: «radicais» e «moderados» juntaram-se no mesmo lado da barricada contra a arbitragem internacional.
Reunido de emergência no domingo, o Parlamento da República Srpska, com todos os deputados presentes, rejeitou por 62 votos contra 16 (dos deputados muçulmanos e croatas) a decisão de transformar Brcko num «distrito neutral» partilhado por sérvios (os actuais administrantes), muçulmanos e croatas. Por 57 votos a favor, 15 contra e seis abstenções, os deputados rejeitaram igualmente a destituição de Poplasen.
«A Assembleia Nacional considera a decisão do Alto Representante relativa à destituição do Presidente da República Srpska contrária à Constituição da RS, contrária às regras eleitorais e contrária aos resultados das eleições que foram validades pela comunidade internacional e por isso rejeita-a», afirma a resolução aprovada na madrugada de segunda-feira.
O Parlamento exigiu ainda a suspensão da arbitragem em relação a Brcko e a realização de negociações a nível internacional. No ar ficou ainda a possibilidade de formação de um governo de unidade nacional e a transferência de todos os órgãos da RS para Brcko.
Entretanto, também o representante da RS na presidência colegial da Bósnia, Zivko Radisik, suspendeu a sua participação nos órgãos federais, o mesmo sucedendo com todos os deputados sérvio-bósnios no Parlamento de Sarajevo.

 

Westendorp dixit

* «É um braço de ferro, mas vamos ganhar contra os radicais sérvios e retomaremos a colaboração com os moderados».

* Poplasen «deve afastar-se, se não o fizer de sua livre vontade, serão as forças de segurança locais a fazê-lo e se estas não conseguirem, serão as tropas internacionais».

* «Poplasen não agiu sozinho, mas sob as ordens» de Belgrado.

* [O presidente jugoslavo, Slobodan Milosevic] «tenta há algum tempo desestabilizar a Bósnia para distrair as atenções internacionais e reduzir a pressão que sofre no Kosovo».

* «Se ele [o representante sérvio na presidência colegial federal da Bósnia, Zivko Radisic] e os seus amigos do Partido Socialista abandonarem as instituições federais, estarão a fazer o jogo dos radicais que tentam usurpar as suas funções».

* «Os radicais sérvios são mafiosos que é preciso impedir de terem mais poder».


Brcko
Um jogo perigoso

A cidade de Brcko é provavelmente o único ponto de convergência entre os sérvios da Bósnia.

Na manta de retalhos resultante dos acordos de Dayton (ver quadro), Brcko ficou como o único corredor a ligar as duas partes da República Srpska (RS), o que lhe confere uma importância particular: é vital para a própria sobrevivência da RS.
Em Dayton, os negociadores perceberam que sem Brcko os sérvios da Bósnia não podiam aceitar o acordo que lhes era imposto, pelo que a cidade foi colocada sob o seu controlo. No entanto, porque muçulmanos e croatas também reclamam a cidade, e porque a mediação internacional não queria perder o controlo da situação, Brcko ficou sujeita a «arbitragem internacional».
O significado desse estranho estatuto tornou-se claro no final da semana passada quando Roberts Owen decidiu transformar a cidade em «distrito neutro», retirando o seu controlo aos sérvios bósnios. Croatas e muçulmanos aplaudiram, bem como a NATO e a generalidade dos países ocidentais. Os sérvios, vendo quebrada a continuidade territorial do país que lhes sobrou de Dayton, rejeitaram a uma só voz a prepotência.
Os resultados desta situação são imprevisíveis, tanto mais que as forças da NATO (Sfor) que permanecem no terreno, preparadas para aí permanecer sem prazo de retirada, tomaram de imediato posições para retaliar qualquer movimento de protesto.
Não é difícil perceber que tudo isto faz parte de um jogo mais complexo cujo alvo é a Federação Jugoslava. Especialistas na matéria não hesitaram em afirmar que a questão de Brcko foi inspirada pelos EUA no intuito de pressionarem Belgrado em relação ao Kosovo. Dito de outra forma, este seria mais um «recado» aos sérvios para que estes compreendam de uma vez por todas quem é que estabelece as regras do jogo.
Um jogo perigoso, este de acossar o adversário e deixá-lo num beco sem saída. O que é verdadeiramente dramático é que as chamadas democracias ocidentais parecem achar tudo isto muito natural.


«Avante!» Nº 1319 - 11.Março.1999