Entrevista com Jerónimo de Sousa:
«Com um PCP mais forte
não haveria
pacote laboral»


Em vésperas de começar uma campanha do Partido contra as graves alterações legislativas que o Governo PS quer ver aprovadas e num momento em que os trabalhadores e o movimento sindical unitário preparam a grande acção nacional de 25 de Março, Jerónimo de Sousa, membro da Comissão Política do PCP, defende que há mais condições hoje para travar o pacote laboral e salienta que só o reforço da votação nos comunistas e na CDU pode garantir uma mudança de política, no sentido mais favorável aos trabalhadores.


«Avante!»:Desde que surgem as primeiras referências a novas alterações à legislação laboral, ficou claro que não se trataria de um pacote laboral como os dos governos PSD. Mas, apesar das dificuldades que se colocavam no esclarecimento e na oposição a tais projectos, o Governo teve que recuar, tanto no calendário, como no processo legislativo. Houve algum recuo também no conteúdo das propostas de lei?

Jerónimo de Sousa: — O primeiro recuo do Governo data, na realidade, de 1996, aquando da luta notável dos trabalhadores têxteis pelas 40 horas. Nessa altura, foi aprovado o Acordo de Concertação Estratégica, que deveria ter resultado logo em medidas legislativas. Mas não houve condições políticas nem sociais para o Governo avançar.
Decidiu, depois, avançar em 1998, escolhendo o tempo de férias e procurando de uma forma ilegítima impedir que a AR promovesse a discussão pública, querendo substitui-la por uma falsa discussão, com a publicação no Boletim do Trabalho e do Emprego e a aprovação de algumas peças legislativas em reuniões do Conselho de Ministros.
Mais uma vez teve que recuar, devido particularmente à luta da CGTP que, mesmo em período de férias, desenvolveu grandes acções de denúncia e protesto contra os objectivos do Governo.
Não é excessivo sublinhar o importante papel desempenhado pelo nosso Partido, no alerta e na mobilização dos trabalhadores, definindo a existência de um pacote laboral disfarçado em cerca de 30 propostas legislativas, que visava a alteração profunda da correlação de forças nas empresas, que já é bastante desfavorável aos trabalhadores.
Mal reabriu a actividade parlamentar, em Setembro, novamente o Governo tomou a iniciativa, desta vez canalizando as suas propostas para a AR. Logo na primeira reunião da conferência de líderes, o ministro dos Assuntos Parlamentares expressou a vontade do Governo de ver aprovada até 15 de Dezembro, pelo menos, a lei sobre o trabalho a tempo parcial.
Surge prontamente uma nova resposta da CGTP, do movimento sindical, dos trabalhadores, com acções muito diversificadas no País. De novo, o Partido tem um papel importante, levando a cabo uma campanha nacional de contactos com os trabalhadores, que permitiu uma maior clarificação do que estava em causa. Para isso contribuiu ainda a própria discussão pública promovida pela AR em torno das propostas de lei, designadamente do trabalho a tempo parcial - que, convém lembrar, suscitou uma das maiores participações de organizações e plenários de trabalhadores, com cerca de 1500 pareceres.
Este pujante movimento dos trabalhadores teve reflexos na AR, e mais uma vez o pacote voltou a ser adiado sine die. Surpreendentemente, já entrado o ano de 1999, durante o qual vão decorrer dois processos eleitorais, o Governo decide agendar para Março e para início de Abril aquilo que consideramos como as peças mais gravosas do pacote laboral.

— A resistência levou o Governo a fazer algumas alterações no conteúdo das suas propostas?

— Em relação à peça que consideramos mais grave, a do trabalho a tempo parcial, a proposta que se encontra na AR está tal qual a que saiu da sede da Concertação Social, subscrita pela UGT, o patronato e o Governo.
A proposta de lei sobre as férias foi aliviada de três aspectos mais escandalosos e mais chocantes, mas não lhe foi retirado o sentido principal, que é submeter à assiduidade o direito a férias, mantendo a injusta penalização de alguns milhares de trabalhadores e trabalhadoras que são forçados a faltar, por doença, acidente ou assistência a familiares.
Mantém-se a alteração do conceito de retribuição, reduzindo o salário e excluindo as remunerações variáveis, o que se vai reflectir nos subsídios de férias e de Natal e na própria formação das pensões de reforma.
Continua a ser apontada uma redução do período em que o trabalho é considerado nocturno e em que os trabalhadores recebem o respectivo subsídio.
Pelo caminho só ficou a alteração da lei dos contratos a prazo.
Tem uma importância simbólica - e também definidora da natureza da política deste Governo - a proposta que visa conceder às associações patronais o direito de participarem na elaboração de legislação do trabalho. Esta alteração afronta a própria Constituição, que não tem uma visão salomónica acerca dos direitos dos trabalhadores e das entidades patronais. Na Constituição está feita uma opção pela parte mais frágil e mais desprotegida, o trabalhador, procurando compensar o desequilíbrio devido ao grande poder patronal. Mas esta opção que os constituintes fizeram está a ser defraudada por uma proposta de lei que quer pôr os patrões no mesmo pé de igualdade que os trabalhadores.
Todos os projectos legislativos se interligam numa visão desregulamentadora, numa visão de desvalorização da contratação colectiva, num atentado grave ao direito ao trabalho e à segurança no emprego, na tentativa de restringir e limitar direitos que são património dos trabalhadores e estão há muito consagrados em lei.
Mas isto não é fácil de descodificar. As cinco ou seis peças de conteúdo mais grave são cobertas por uma panóplia de mais 25 propostas, algumas das quais até têm um conteúdo positivo. E aqui está a grande contradição: o Governo propõe o aumento das sanções a aplicar às entidades patronais que não respeitem os direitos dos trabalhadores, quando simultaneamente estes direitos estão a ser retirados e violentados por via de lei.

— Quer a lei das férias, quer a do trabalho a tempo parcial, estão apontadas contra os futuros trabalhadores, e não contra aqueles que hoje estão no mercado de trabalho. Isto também dificulta a luta?

Numa leitura global dessas e das outras alterações mais graves que são propostas, pode dizer-se que este Governo quer criar condições para o surgimento de uma nova geração de trabalhadores sem direitos. Um dos argumentos da UGT e do seu secretário-geral, para tentar neutralizar a luta dos trabalhadores actuais, é dizer que o novo regime seria só para os que viessem depois.
Isto é verdade, mas não é a verdade toda. Por um lado, sabemos bem o que pode significar «por vontade e iniciativa do trabalhador», designadamente nas empresas onde a pressão patronal é permanente. Mas há também a possibilidade de pôr as alterações a vigorar, «através de convenção colectiva», o que logo nos traz à memória o triste papel que neste campo tem sido desempenhado pelas organizações filiadas na UGT, que abdicam, na mesa de negociações, de direitos actualmente consagrados na contratação colectiva.
Mesmo que fosse só para os jovens futuros trabalhadores, esta perspectiva mereceria a luta de quem conquistou esses direitos, mais que não fosse por uma questão de solidariedade geracional. Sendo verdade que este pacote laboral se destina prioritariamente aos mais jovens, ele iria atingir inevitavelmente as mulheres e acabaria por afectar todos os trabalhadores.

— Com tão graves ameaças, nota-se que esteja a alargar-se o leque dos que se opõem a este pacote laboral?

— Esta luta não é nada fácil. Nós temos consciência da gravidade destas propostas e procuramos alertar e esclarecer os trabalhadores. Mas defrontamo-nos com os efeitos da política mediática, com a força da notícia veiculada pelos grandes meios de comunicação social.
Por exemplo, sabemos que a modificação da lei das férias poderia levar a que um trabalhador tivesse apenas 10 dias de férias e de subsídio de férias. Mas o que ficou no ouvido de milhões de portugueses foi a notícia de que o Governo ia dar mais 2 dias de férias. Houve um silêncio absoluto, por outro lado, quanto ao trabalho a tempo parcial e ao conceito de retribuição...
Travamos um combate desigual.

— Mas essa desiguldade não é de agora e não evitou que o Governo tivesse que recuar noutras ocasiões. Hoje há mais ou menos possibilidades reais de deter esta ofensiva?

— Hoje há melhores condições para travar a luta contra este pacote laboral. Houve mais esclarecimento e mais consciencialização dos principais destinatários das medidas legislativas, que são os trabalhadores. Houve sectores e personalidades que reagiram aos perigos do pacote laboral, designadamente, sectores da Igreja católica e personalidades, como José Saramago e outros intelectuais, que foram capazes de perceber que não se trata apenas de um conflito laboral, mas de uma questão que tem a ver com o progresso e os avanços da própria civilização humana, de que os direitos dos trabalhadores são parte integrante. O próprio Partido, pela sua influência social, conseguiu também alargar o esclarecimento e a mobilização. É este o objectivo da campanha que vamos levar a cabo nesta segunda quinzena de Março. Mas vamos também defender a necessidade de reforçar o PCP para que os trabalhadores vejam respeitados os seus direitos, que o PCP precisa ter mais voz e mais força na AR e no PE, para conseguir que sejam aprovadas mais propostas positivas e que sejam evitadas mais propostas negativas para quem trabalha. Vamos dizer que o Partido merece mais apoio dos trabalhadores.
Em muitas empresas, em sindicatos e comissões de trabalhadores, muitos homens e mulheres que votaram no PS - e estavam de certa forma neutralizados para a luta pela sua opção de voto - aperceberam-se da gravidade das propostas legislativas e estão dispostos a combatê-las.
Creio que só assim se entende esta decisão da CGTP de realizar a 25 de Março uma grande manifestação nacional «Por Abril, pelos direitos dos trabalhadores, contra o pacote laboral» e que será, provavelmente, a maior acção de massas da CGTP, à excepção do 1º de Maio. A dimensão deste protesto, com a forte participação dos trabalhadores, poderá determinar ainda os desfechos legislativos, designadamente os agendamentos que o Governo quer para os primeiros dias de Abril.
Mais tarde, com o aumento de votos e de deputados do PCP, estaremos a criar condições para mudar de rumo na política nacional e para impedir que este ou outros pacotes laborais sejam aprovados.