Vásquez Montalbán e a Revolução cubana
Por Miguel Urbano Rodrigues
Y Dios Entró En La Habana é o titulo do último livro de Manuel Vásquez Montalbán. Tem 713 páginas e foi escrito em poucos meses. Dizem-me que a primeira edição espanhola, de 45 mil exemplares, teve grande aceitação no mercado, mas suscitou reacções contraditórias, por vezes antagónicas, da crítica.
O género não cabe
em moldes. Não é um trabalho de reflexão sobre a história,
nem um ensaio, menos ainda uma narrativa, sequer uma reportagem.
Creio que a intenção não deve ser subestimada. O livro é
muito ambicioso não obstante ter sido confeccionado à pressa
(nem as anedotas escapam a repetições). De algumas páginas
sobe uma brisa de megalomania. Cuba torna-se pretexto para uma
caótica tentativa de interpretação da aventura humana. Mas ao
tentar introduzir no texto o mundo, o tempo e o homem, o
resultado não corresponde à ambição. O discurso, em vez de
adquirir profundidade, faz-se mais horizontal e, por vezes,
perde-se em trivialidades que lembram as dos colunistas da
revista mundana Hola.
Em vez de iluminar a história, o autor deixa, então, entrever
uma atitude leviana, para não dizer irresponsável, perante o
fluir da história e o espectáculo aparente da vida em Havana.
Montalban imaginou uma abertura-prólogo na dimensão do livro
sonhado. Terá pensado em Garcia Marquez? Se tal aconteceu, foi
mais um equívoco. As imitações do autor de «Cem Anos de
Solidão» não funcionam. O humor ganha nelas contornos
malévolos ou ridículos; não comove nem faz sorrir.
O escritor entra de rompante. Coloca Fidel sobre um rochedo no
Malecón habanero, como gigante ciclópico, ainda poderoso, mas
envelhecido, sobrevivente de uma Revolução que se assume como
tal mas teria deixado de o ser.
O exórdio marca o estilo de um livro arrogante. A sociedade
cubana é extremamente complexa, apesar da cordialidade do povo.
Não se revela, e o processo de compreensão do seu lado não
visível caminha vagarosamente. Mas Montalban chegou, viu e quis
explicar tudo de uma penada. Duas ou três semanas de
permanência em Havana revisitada pareceram-lhe suficientes para
situar os homens no movimento da história, captar o sentido dos
seus actos, avaliar os erros do rumo seguido, e deixar esboçadas
as veredas da salvação possível.
Compreendeu pouco e mal.
Pode alegar em sua defesa que entrevistou muitas personalidades
do Estado e do Partido. Gravou as suas declarações e
reproduziu-as. Falou concretamente com Ricardo Alarcon, Carlos
Lage, Abel Prieto, Alfredo Guevara, Eusébio Leal, etc.. Não se
lhe pode censurar que tenha entrevistado outras tantas pessoas,
pelo menos, cubanas e estrangeiras, cujas opiniões reflectem uma
postura pessimista ou catastrofista. Aparentemente o seu método
de trabalho foi impecável; fez uso de um direito democrático.
Cabe, porém, recordar que o livro se destina ao público de
língua espanhola e ao europeu, pois será eventualmente
traduzido para diferentes idiomas. Não foi por acaso que
numerosos compatriotas seus foram também entrevistados: Felipe
Gonzalez; o economista Carlos Solchaga; o deputado do PP Alfredo
Recarte, secretário geral da sucursal em Madrid da Fundação
Cubano-Americana de Miami; Sandomingo, Encarregado de Negócios
da Espanha em Havana. Ouviu também contra-revolucionários e
dissidentes como Gutierrez Menoyo, Jesus Diaz, Ivan de la Nuez, e
outros. A equidistância rompe-se. Significativamente, as
posições que Montalbán deixa entrever através da própria
formulação das perguntas aproxima-o dos entrevistados
espanhóis, todos críticos e cépticos, e, por vezes, dos
chamados dissidentes.
Tomar a
parte
pelo todo
Confrontados com
análises não apenas diferentes, mas com frequência
antagónicas, os leitores espanhóis e latino-americanos -
desinformados pelo bombardeamento mediático anti-cubano - tendem
a receber com reservas a opinião dos cubanos revolucionários (o
melhor do livro) sobretudo quando o autor dela se distancia numa
atitude que oscila entre a desilusão e a piedade.
O discurso político de revolucionários de diferentes
gerações, o discurso dos adversários e dos desencantados, e o
discurso «espanhol», sempre sobranceiro, são completados pelo
filme da vida, tal como Montalbán o projecta, iluminado pelo seu
próprio discurso.
O povo cubano, o grande sujeito da historia, está ausente como
personagem. Não aparece. O escritor deambulou por Havana sem o
ver. Ignorou o mundo do trabalho. A sua atenção foi absorvida
pelo submundo das gineteras, dos marginais, dos santeros, de
parasitas e delinquentes gerados pelo Período Especial, e
multiplicados pelo turismo.
Montalbán falou com dezenas de intelectuais. Demonstra um
conhecimento apreciável da literatura cubana. Num vaivém que se
faz pesado, a referência a autores e obras assume uma função
quase instrumental ao inserir-se de algum modo na explicação de
Cuba. Obviamente, os intelectuais cumprem na Revolução Cubana
um papel de enorme importância. Insubstituível. Mas o mundo
literário que Montalbán apresenta é enganador, não reflecte
esse papel.
O escritor catalão não só toma uma pequena parcela pelo todo
como comete o erro - pela sua própria mundividência - de
atribuir aos artistas e intelectuais da Ilha, como segmento da
sociedade, uma postura perante o desenvolvimento da história que
distorce a realidade. O conjunto das intervenções feitas no
recente Congresso da União dos Artistas e Escritores de Cuba -
UNEAC deita por si só abaixo a visão esquemática e
capituladora de Montalbán. Os escritores cubanos não esconderam
que estão apreensivos com as sequelas do Período Especial. Mas
as suas preocupações resultam da existência de «bolsões do
capitalismo» na sociedade cubana, de desigualdades criadas pelo
bimonetarismo, dos efeitos do mercado no mundo da cultura, da
problemática de uma participação criadora.. Debateram esses e
outros temas e o funcionamento de mecanismos que geram a
desigualdade, bem como a maneira de os combater. Ficou
transparente que estão vocacionados para a defesa do socialismo
e não para uma transição que implique uma marcha para o
capitalismo. Outra mazela, e grave, está omnipresente em quase
todos os capítulos do livro. Excelente cultor do género
policial, familiarizado com a técnica do suspense, o escritor
catalão enxerta na análise política com muita frequência o
mexerico pessoal, a intriga de salão, a anedota. A estrutura do
texto ressente-se, nomeadamente quando o fascínio pela fofoca
invade o terreno da vida íntima dos dirigentes da Revolução.
Não pode ser sério um livro cujo autor disserta com a mesma
alegre irresponsabilidade sobre a estratégia ecuménica de João
Paulo II, o marxismo martiano de Fidel, a estátua habanera de
Lady Di, os gostos culinários dos dirigentes revolucionários, a
genealogia das mulheres por eles amadas, a poesia do gineterismo,
e o futuro do povo cubano.
Realidade e ficção
O livro tem por
alicerce e motor dois planos de escrita; quando se cruzam, o
leitor sente-se perdido num labirinto. Não tento explicá-los
por temer arrastar o leitor para o caos.
O discurso sobre Fidel pretende ser simultaneamente ideológico,
literário e psicologista; com a peculiaridade de estar semeado
de chaves escondidas, imprescindíveis à compreensão da
história na perspectiva do autor. A injecção de informações
falsas, umas, de duvidosa credibilidade outras, desloca-o
constantemente do terreno da política para o do colunismo
social.
O Papa cumpre na obra um papel em princípio fundamental. Mas
também aí o resultado não corresponde ao projecto. Montalbán
desenvolve interpretações fantasistas sobre a visita papal.
Aquilo que sobre o tema ouviu de personalidades tão diferentes
como Ricardo Alarcón, monsenhor Cespedes, Navarro Valls (o
secretário de Imprensa do Vaticano), e Frei Beto não parece ter
abalado minimamente a sua convicção de que a presença em Cuba
de João Paulo II ficará de alguma maneira a assinalar uma
viragem histórica. Segundo ele os grandes dividendos foram parar
ao Vaticano.
Para se avaliar o significado especialíssimo atribuído pelo
escritor ao acontecimento, julgo indispensável chamar a
atenção para duas opiniões que expressa:
l - «A geração do entusiasmo - escreve - é profundamente
religiosa, é evidente, embora seja ateia ou agnóstica, e adapta
a sua estratégia de transcendência ao contingente, mas não a
abandona e veste Deus de verde olivo, como se ele fora o artista
da Revolução, impressionada por aquela força imparável do
discóbolo do colégio de Belém que passou pelo Bogotazo e
chegou à história com as armas na mão»
2 - Fidel, fascinado pela Teologia da Libertação, e para salvar
a herança da Revolução, teria abraçado uma nova ideologia,
«o nacionalcatolicismo».
Eis uma amostra do
nível da reflexão que a visita do Papa suscitou em Montalbán.
Ex-comunista, o escritor formou com os anos uma opinião muito
desfavorável sobre a intervenção de Lenine na história. Sem o
afirmar explicitamente, sugere que Marx e Engels seriam hoje
relíquias merecedoras de repouso nas prateleiras de uma
arqueologia do pensamento revolucionário. Mas nas suas
transposições é inábil ao insistir na ideia de que Lenine
seria em Cuba uma recordação esfumada e até incomoda. Navega
num oceano de fantasia tentando convencer os leitores de que algo
semelhante a um neogramscismo seria presentemente a ideologia
dominante entre os intelectuais mais lúcidos de Cuba,
distanciados do «nacionalcatolicismo» laico do Partido e do
Estado, que teriam arquivado na pratica o marxismo leninismo...
Como admirador de Gramsci e de Mariategui (talvez o mais original
dos pensadores marxistas da América Latina ) creio que
Montalbán fere o que de melhor há em ambos ao esforçar-se
sinuosamente por opô-los a Marx, num jogo em que mete Cuba pelo
meio.
Como se a história tivesse a estrutura de uma novela, Montalbán
mistura realidade e ficção. Até as anedotas, escutadas entre
rodas de mojitos, nos serões político-literários do Hotel
Cohiba, servem, pela maneira como são utilizadas, para levar o
leitor a juízos pessimistas. Quem não tenha intimidade com a
vida cubana é empurrado gradualmente para a conclusão
perfilhada pelos desencantados. Esta não é ostensivamente
assumida por Montalbán, mas emerge do grande mural que ele vai
desenhando: o de uma sociedade que se petrificou, sem
perspectivas, dirigida por uma minoria que governa invocando uma
revolução agora fantasmática.
O escritor move-se bem entre cépticos de múltiplos quadrantes,
sem enxergar entre os interlocutores, nem sequer em Miami, um
contra-revolucionário autêntico, quimicamente puro. Os heróis
tutelares que realizaram prodígios que lhes não são
contestados - inclusive uma grande Revolução - esses são
apresentados sob máscaras caricaturais, como seres do passado,
arcaicos.
A «solução» de Montalbán
O discurso sobre
Fidel é perverso na intenção. Raul surge numa zona de sombras,
imprevisível, quase felino. O perfil de alguns dirigentes da
velha guarda, com influência no Partido, faz deles émulos da
estagnação brezneviana.
Nas entrevistas o questionário é quase sempre cauteloso quando
o interlocutor defende a revolução e vê luz no fundo do
túnel. Nesses casos Montalbán não responde à argumentação.
Mas, dialecticamente, ao falar com críticos (ou dissidentes), o
escritor anima-se e formula as perguntas em estilo desafiador
para que eles digam aquilo que, afinal, deseja ouvir. Em
horizontes brumosos surgem os contornos de soluções que
desembocariam na social democracia, ou seja, no capitalismo.
Comete, porém, erros. Quando fala com estrangeiros progressistas
nem sempre as coisas lhe saem bem. No diálogo com Frei Beto, por
exemplo, abriu excessivamente a guarda. O dominicano brasileiro
desmontou a cassette dos direitos humanos na versão que corre o
mundo, gravada pela direita, e deu-lhe uma lição sobre os
sofrimentos de um povo que não perdeu a confiança e a alegria
de viver em circunstâncias que teriam levado qualquer outro ao
desespero e à capitulação.
Conversas inesperadas com o embaixador Wayne Smith, que chefiou o
Escritório dos EUA em Havana, e o escritor mexicano Carlos
Fuentes - cuja posição crítica sobre a Revolução Cubana é
bem conhecida - surgem nas páginas de «Y Dios Entró en La
Habana». Com análises diferentes também eles acabam repetindo
a monótona conclusão que Montalban impõe aos leitores: somente
a afirmação de uma sociedade civil cujo perfil aparece
esboçado, e do pluripartidarismo (era inevitável) poderiam
viabilizar em Cuba uma transição pacífica que permitiria
conservar aquilo que de positivo sobrou da Revolução. Tal
saída exigiria uma maior abertura ao capital estrangeiro,
nomeadamente aos investimentos dos cubanos de Miami e também
medidas que autorizassem a criação de pequenas e médias
empresas privadas (produtoras de mais valia) com capital cubano.
Por outras palavras: sugere-se uma política que abriria as
portas ao renascimento de uma burguesia nacional.
Montalban não desconhece que em Cuba a fórmula da chamada
transição política para uma democracia de figurino tradicional
é, na definição de Fidel, sinónimo de contra-revolução. Mas
ela parece atrair o escritor catalão como se fora uma saída
salvadora.
Poderia inferir-se, apressadamente, da leitura deste artigo que
Vásquez Montalban é um adversário da Revolução Cubana. Seria
uma conclusão incorrecta. Ele se assume e apresenta como um
amigo crítico que passou do entusiasmo da juventude ao
desencanto.
Não excluo a hipótese de que identifique neste seu livro uma
contribuição positiva ao processo de reflexão sobre Cuba e a
sua Revolução. Tal convicção, a existir, não seria,
entretanto, prova de lucidez, mas sim de ausência de capacidade
de autocrítica.
Não estamos somente perante um livro sem qualidade. Pessoalmente
estou persuadido de que «Y Dios Entró en La Habana» é uma
obra negativa para a imagem da Revolução Cubana num momento em
que ela tanto necessita de uma solidariedade ampliada.
A Revolução vive
Muitos leitores
reagiram com perplexidade ao final do livro. Num enxerto abrupto,
termina com um diálogo do autor com Rigoberta Menchu e com a
divulgação de cartas trocadas entre ele e o sub-comandante
Marcos.
Não vejo qualquer absurdo nesse fecho. Ele responde à
mundividência de Vásquez Montalbán. Admiro muito a
guatemalteca que recebeu o Nobel da Paz e tenho o maior respeito
pelo dirigente do Exercito Zapatista de Libertação Nacional.
Mas não identifico em qualquer deles um pensamento
revolucionário que ajude a humanidade a encontrar caminhos que
conduzam à transformação da vida na Terra, vandalizada pela
globalização capitalista. Outra é a atitude de Montalbán.
Para ele, Rigoberta e Marcos apontam e simbolizam a estrada da
evolução possível dentro do sistema, a das insurgências
essenciais, lentas, que levarão a humanidade à integração, ao
seu destino mestiço.
Montalbán, tal como o polaco Wajda no seu «Danton», perdeu a
confiança na própria ideia de revolução. Esta, mais do que
utopia, aparece-lhe hoje como um infinito absoluto, inatingível,
pelo qual não vale a pena lutar porque a revolução seria
incompatível com a fragilidade da condição humana.
Felizmente, em Cuba, 40 anos após a vitória de um punhado de
cavaleiros da utopia, vive e sofre um povo que continua a
acreditar na ideia de revolução.
São gigantescos e dramáticos os desafios que esse povo
enfrenta, na defesa da sua imperfeitíssima revolução, semeada
de erros, insuficiências e contradições, marcada no seu
caminhar incerto por incógnitas sem resposta. Mas a sua vontade
de sobreviver, expressa numa resistência épica ao maior
império da história, vale por um desmentido oposto ao
cepticismo derrotista de Vásquez Montalbán. O não de
Cuba aos EUA é a melhor prova de que a Revolução permanece
viva.