A TALHE DE FOICE
Em nome do povo


Não há nada como os conclaves dos partidos burgueses para se ouvir falar do povo. Nalguns casos, quando a demagogia já perdeu de vista a noção do pudor e do ridículo, é até possível ouvir falar «o povo» nos tais conclaves dos que há muito perderam, com a vida privilegiada a que acederam, a noção da realidade do comum dos mortais.
Três exemplos recentes atestam esta afirmação.
Primeiro foi o Tino na magna reunião do PS, transformado num espectáculo mediático que levou ao rubro a família socialista ao debitar durante um quarto de hora um inflamado discurso populista; seguiu-se o , repescado por Marcelo Rebelo de Sousa a Bordalo Pinheiro para fazer a ponte entre um PSD elitista e conservador e o imaginário nacional; faltava naturalmente a Maria, oportunamente trazida à liça em tempo de quotas pelas mãos cuidadas de Paulo Portas nesse evento de engenharia partidária da direita travestida de popular que foi a cimeira do CDS/PP.
A comunicação social, como lhe compete, deu ao assunto o devido destaque. Como o «interesse jornalístico» - sacrossanto critério que baliza a acção de quem informa, logo de quem escolhe, logo de quem selecciona, logo de quem decide o que é ou não importante que venha a público - choca frequentemente com a disponibilidade do espaço ou do tempo de antena disponíveis, outros assuntos ocorridos no período dos três eventos em questão foram ignorados ou relagados para secundo plano. É o caso, por exemplo, das insólitas medidas tomadas pela Comissão Europeia para garantir a transparência, isenção e idoneidade dos seus comissários.
O caso é sério, tanto mais que ainda recentemente as suspeitas de corrupção andaram à solta por Bruxelas e Estrasburgo, manchando o bom nome dos responsáveis europeus que à custa de penosos sacrifícios e muita dedicação pessoal, por puro altruismo e amor à camisola, andam a tratar da «construção europeia».
Decidiu então a Comissão, entre outras coisas, que a partir de agora os senhores comissários deixam de poder receber prendas de valor superior a 30 contos; passam a ter direito 'apenas' a 4.000 litros de gasolina por ano; só podem adquirir anualmente, a preço isento de taxas, 12.000 cigarros; e no que toca a whisky, no mesmo período e com a mesma isenção, não mais do que uma garrafa dia sim dia não.
Aperta-se-nos o coração perante tamanha austeridade. Como poderão sobreviver os comissários de um país como Portugal, onde 7,8 por cento dos 3.200.000 trabalhadores por conta de outrém vivem com o salário mínimo nacional (61.300$00)? Como poderão estes cavaleiros andantes dos tempos modernos, obrigados a tamanha contenção de tabaco e álcool, cumprir as suas promessas aos reformados e pensionistas que auferem pensões de miséria?
Vislumbra-se no entanto uma luz ao fundo do túnel. Dado que as deslocações oficiais têm ajudas de custo, talvez a gasolina extra, gratuita, se bem gerida, dê para umas visitinhas aos eleitores. Quanto às prendas - simpatias do capital à política, sem segundas intenções, evidentemente - só parecem estar limitadas no montante, não na quantidade, pelo que várias prendas de trinta contitos sempre hão-de dar para alguma coisa.
Conhecidas as capacidades de gestão (e de imaginação) dos mentores nacionais dos Tinos, dos Zés e das Marias há motivos para ter esperança. Afinal, é tudo para o bem do povo. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1319 - 11.Março.1999