A gula e a gamela
O Jornal da Noite da SIC deu, na passada
sexta-feira, notícia de que José Eduardo Moniz estará a ser
investigado num caso que se configurará como de corrupção
passiva, surgindo a Olivedesportos como possível entidade
corruptora. Segundo a informação, a José Eduardo Moniz e a
Manuela Moura Guedes terão sido pagas por aquela empresa duas
viagens, uma ao Brasil e outra aos Estados Unidos, o que poderá
ter estado relacionado com um alegado favorecimento da
Olivedesportos pela RTP, onde Moniz era então o «homem forte».
De acordo com os deveres formais da boa deontologiajornalística,
a SIC deu também conta de que o investigado já rejeitara a
suspeita num breve fax que endereçara à estação. Dois dias
depois, o «Público» deu seguimento ao que a SIC revelara numa
notícia a quatro colunas da sua última página, com todos os
pormenores que decerto pôde reunir.
A inclusão do desmentido de Moniz é sem dúvida importante e
simpática, e é claro que a SIC se referira a uma investigação
ainda em curso, isto é, a qualquer coisa que estava longe de
estar provado. Porém, quem manda nos noticiários da SIC não é
parvo nem ingénuo e, por isso, sabe perfeitamente que notícias
como esta, mesmo se duvidosas e mais tarde completamente
desmentidos, lançam sobre os acusados uma nódoa de facto
indelével. Quer isto dizer que é de todo improvável que a SIC,
ao dar a notícia que deu, aliás em infracção não só das
regras éticas mas também a disposições legais, não quisesse
atentar contra a imagem pública de José Eduardo Moniz no
momento em que este parece estar a ter êxito profissional à
frente da TVI. Por este possível motivo, que é muito visível,
ou por qualquer outro, isso será o que menos importa.
Por mim, parece-me de todo improvável que Moniz se tenha
«vendido» pelo valor de duas viagens duplas que custaram cerca
de 1600 contos, verdadeira bagatela para um homem como ele que,
de resto, pouco tempo depois saiu da RTP com contratos de futura
prestação de serviços que, esses sim, ascenderam a valores
verdadeiramente interessantes. Aliás. a explicação depois
avançada pela agência de viagens Cosmos acerca do caso
afigura-se-me pelo menos muito plausível, embora seja claro que
eu não tenho de dar palpites acerca de uma questão que estará
a ser investigado pela Polícia Judiciária. Tudo me parece,
pois, apenas um sinal de gula pelo escândalo e de alguma
hostilidade por parte da SIC, o que situa o incidente à
condição de miudeza lá entre eles.
Um misterioso fastio
Há nisto, porém, o
óbvio vestígio de uma outra gula, da mesma cepa mas muito mais
ampla, que há muito alastra pela Comunicação Social portuguesa
e não apenas por ela: a caça, muito mais aparente que real, à
corrupção e aos corruptos, não por respeitáveis e até
recomendáveis motivações cívicas e morais mas sim, muito mais
simples e verdadeiramente, porque notícias sobre corrupções
efectivas ou supostas, tanto faz, são boa mercadoria de
excelente venda, promovem e qualificam jornais, rádios e TV's,
dão aos jornalistas envolvidos na informação o natural
sentimento de serem «justiceiros» ou pelo menos de o parecerem,
o que para o caso vale o mesmo. Assim o público é diariamente
abastecido de casos de corrupção de gente da política e dos
futebóis, que são os territórios com maior visibilidade
conferida, aliás, pelos mesmíssimos media que depois os
varrem com rajadas de suspeitas e denúncias.
Que as corrupções existem não oferece dúvida, mas é preciso
acrescentar que é natural ser assim, que o contrário é que
seria muito de maravilhar numa sociedade onde o pragmatismo (isto
é, a ausência de embaraços éticos, de escrúpulos) atirou
para o sótão das velharias os arcaicos valores de honradez e
lealdade, tornados característicos de obsoletos «perdedores»
num mundo que só valoriza e aplaude os «ganhadores». O
neoliberalismo puro e duro, que é ainda dominante, celebra as
virtudes do «killer instinct», e quando se lembra isto está
tudo dito, mesmo que a fórmula só deva ser entendida em sentido
figurado, o que de resto nem sempre acontece. Porém, o que em
tudo isto se me afigura mais interessante, talvez mais
importante, é que o verdadeiro habitat da corrupção, o terreno
onde radicam todas as suas tradições e todos os seus métodos,
é o mundo dos negócios, sem que os media minimamente se
mostrem comovidos com isso, salvo excepções raríssimas.
Dir-se-ia mesmo, muitas vezes, que a gula do jornalismo dito de
investigação é substituída por um desconcertante fastio que
leva a que se desvie os olhos para não ver. Fico a perguntar-me
se o alarido em torno de por vezes mínimas, outras vezes só
míticas, corrupções na política e no futebol não servem para
desviar as atenções da macrocorrupção endémica que grassa no
negocismo. E se o fastio não decorre de poder ficar em risco, se
a gula persistir, a manutenção da gamela que o patronato
proprietário dos media estende aos que nos abastecem de
notícias. Correia da Fonseca