A ideologia
do fim das ideologias

Por Jorge Cordeiro
Membro da Comissão Política do CC do PCP


A teoria do fim das ideologias e o desenvolvimento argumentativo que lhe vem associado - esquerda e direita apresentadas como questões ultrapassadas e desprovidas de sentido - são seguramente, e de há muito, o melhor seguro de vida da ideologia dominante.

Para estes teóricos, por si mesmos apresentados como isentos e laboriosos investigadores de ciência política, o capitalismo não seria uma ideologia mas a ordem natural das coisas e da vida, sem alternativa, a que tudo se deveria subordinar e a que todos se deveriam conformar.
As sociedades seriam assim como que uma massa informe, de seres com iguais oportunidades, não dependentes das relações de cada um com a produção, o modo de propriedade e os processo de apropriação da riqueza, sujeitos apenas às contingências da concorrência entre os mais e os menos capazes e dotados.
Os governos são apresentados como humildes servidores da coisa púbica sem ligação a interesses, e que fariam o melhor que sabem em nome de todos.
As políticas aparecem sem conteúdo nem motivações ideológicas, desligadas dos partidos que os suportam e dos interesses das classes que representam.
Neste pântano ideológico de negação absoluta das ideologias lá aparece uma ou outra vez a concessão feita ao reconhecimento da existência de uma ideologia : a comunista. Apresentada como única e em extinção, aberrante nos tempos modernos, sujeita a criminalização. Concessão feita no pressuposto implícito, entretanto largamente difundido, que o que determinaria as políticas neoliberais em vigor não seriam motivações ideológicas.
Entre muros, a estafada teoria do fim das ideologias está de volta. Os tempos a isso aconselham: a proximidade das eleições com as inerentes operações de viciação de dados para a construção de opinião, por um lado; as comemorações dos 25 anos da Revolução de Abril e a tentativa organizada de reescrita da nossa história recente, por outro.
É sobre o pano de fundo da inexistência de valores e interesses diferentes e antagónicos na sociedade que se procura identificar hoje o 25 de Abril como um acto simples de conquista de democracia em que todos de igual modo se reveriam e se identificariam. Com esta operação de esvaziamento ideológico do 25 de Abril se procura subtrair da memória e do conhecimento o significado e alcance das profundas transformações económicas e conquistas sociais alcançadas com a revolução. Para assim mais facilmente procurar iludir quais os interesses e sectores atingidos e ilibar as políticas de restauração do poder económico dos principais derrotados com o 25 de Abril e de eliminação ou redução dos principais direitos conquistados pela maioria dos trabalhadores e do povo português.
É igualmente sob a capa do alegado esbatimento das diferenças entre esquerda e direita que se alimenta o campo de simulacros que caracteriza a intervenção eleitoral do PS, PSD e PP. Desvalorizadas que são as questões do conteúdo da política, da natureza de classe e das opções governativas aos eleitores restaria optar por um padrão único de políticas em tudo idênticas.
Neste campo se enraízam as tentativas de reduzir as soluções e caminhos da política nacional aos limites de uma alternância destinada a manter, ora com uns ora com outros, a mesma e continuada política de direita.
As escolhas ficariam reduzidas a questões de forma e estilo. Mais dialogantes uns, mais autoritários outros. Ao tom mais professoral de um, ao ritmo alucinante de conversa do outro. Assim e neste quadro o que importa seria saber quem melhor colocado está para ganhar, qual o de melhor perfil e maior simpatia para Primeiro Ministro e não a política e os objectivos de cada força política.
Alegadamente desprovidos de motivações ideológicas PS, PSD e PP procuram assumir-se assim como que os santos padroeiros desta recente descoberta sociológica denominada de "centro" entendida como a mais fluorescente e inexplorada mina de votos. É em nome do "centro" mas com os olhos sempre postos na direita, que se abandonam valores, que se discursa à esquerda para caçar votos para governar à direita, que se desdiz hoje o que ontem se afirmou, que se fazem e desfazem coligações entre parceiros que fraternalmente se esfaqueiam pelas costas.
É em nome dele, só por ele e por mais ninguém do que ele - o "centro"- que alegadamente se propõem governar. Sempre com a boca cheia de preocupações pelos pobres e desfavorecidos e em namoro permanente às classes médias mas com o coração bem fixado nos interesses do grande capital.
Ainda que curiosamente os que se apressam a esbater e a negar a diferenças entre esquerda e direita sejam os primeiros , pelo crédito das causas e valores de esquerda, a invocar alguns deles para captar votos para dar suporte e apoio às suas políticas de direita.
É nesta negação da natureza da política que se perpetua a política de direita, apresentada pelos seus promotores como sem alternativa, reduzida a critérios de gestão corrente, a meros exercícios de equilíbrios orçamentais, de índices de défice público.
Há uma política diferente. Uma política de esquerda. Assumida e afirmada como tal. Com conteúdo e preocupações sociais. De defesa e valorização dos direitos sociais, de respeito por quem trabalha. Uma política que combata as desigualdades, que inverta a actual distribuição de rendimentos entre o trabalho e o capital, que promova a melhoria dos salários e das pensões de reforma. Uma política que enfrente a inadiável reforma fiscal com o objectivo de desagravar os rendimentos do trabalho e eliminar o paraíso fiscal de que goza o capital especulativo e financeiro.
É aqui que se faz a diferença entre uma política de esquerda necessária e indispensável e a política de direita que o PS e o seu Governo pretendem continuar.
Uma política de esquerda cuja viabilização é inseparável do reforço significativo da votação e do numero de deputados do PCP.
Um Partido que se assume e se afirma com os seus valores, os seus ideais e o seu projecto. Um Partido que ao contrário de outros não tem de disfarçar as suas intenções e negar sua própria natureza e que se apresenta aos portugueses como é: vertical, de mãos limpas, de cabeça levantada. Um Partido de esquerda e que, com orgulho, se afirma como tal.


«Avante!» Nº 1322 - 1.Abril.1999