A guerra da «nova» NATO
contra a Jugoslávia

Por Domingos Lopes


Os ataques militares da NATO contra a Jugoslávia representam um novo passo para refazer em novas condições todo o ordenamento internacional.

A escassos dias do 50º aniversário da fundação da NATO, a guerra visa testar até que ponto esta estrutura político-militar pode impor os seus pontos de vista a quem e onde quer que seja.
Sem mandato do Conselho de Segurança da ONU, e violando a sua própria Carta (pois a Jugoslávia não ameaçava nem ameaça nenhum país membro daquela organização), a NATO cria com esta guerra um novo precedente que lhe permita em circunstâncias, por si consideradas adversas, intervir militarmente e impor a sua paz.
Este novo passo pode significar a liquidação do sistema de direito internacional baseado na Carta das Nações Unidas e a inauguração de um novo sistema modelado nos interesses de um conjunto escasso de potências capitalistas que se auto-intitulam de comunidade internacional.
A existência de uma única superpotência associada militarmente na NATO a um conjunto de potências capitalistas constituiria a base duma "nova ordem mundial " fundada no espectacular poderio militar e económico destes países.
O novo conceito estratégico da NATO passa pelo alargamento da organização à Polónia, República Checa e Hungria, e visa isolar a Rússia e a China e intervir num mundo "global" em qualquer canto do mundo. Trata-se na verdade de uma "nova" NATO e de uma total subversão do direito internacional.
Esta guerra contra a Jugoslávia , em pleno território europeu, no coração dos Balcãs, depois de 54 anos de paz, vale como um tubo de ensaio para erguer esse " novo " mundo à margem dos EUA e dos seus aliados mais chegados querem edificar. E naturalmente que esse novo mundo terá uma arquitectura desenhada de acordo com os interesses hegemónicos dos EUA e dos seus aliados. Não será de estranhar que esta pressa norte-americana de avançar numa guerra contra a Jugoslávia, neste momento histórico, tenha também a ver com a vontade hegemónica dos EUA de porem os seus aliados diante de factos consumados.
A ordem que os EUA querem desenhr e impor agora, poderá ser diferente de uma ordem em que a União Europeia possa pesar mais. Não deve ter sido por acaso que os bombardeamentos começaram no dia em que em Berlim se iniciava a Cimeira Europeia, por sinal chefiada por uma imensa maioria de líderes socialistas.

Contra a Europa

O peso político-militar decisivo dos EUA na Europa pode atestar-se nesta decisão de guerra à Jugoslávia. É na Europa que os EUA congeminam guerras. É na Europa que os EUA sabem que estão concorrentes de peso. É contra a Europa que têm planos, seja na versão concorrencial actual, seja mo futuro na versão de combate à esquerda e a uma Europa de paz, progresso social e cooperação.
Quanto mais atar a Europa aos desígnios dos EUA, mais seguros estes se sentirão, e melhor e por mais tempo os seus interesses económicos e políticos serão defendidos.
A guerra contra o Iraque já foi um modo dos EUA imporem a sua hegemonia no Médio Oriente, do qual depende a Europa em termos energéticos. A guerra contra a Jugoslávia é uma nova escalada de afirmação dos EUA junto da Europa. No fundo trata-se de impor a este continente uma política norte - americana e numa fase em que a Europa não tem ainda o poderio que os EUA imaginam que possa vir a ter no futuro.
Esta nova NATO torna-se assim um instrumento ainda mais perigoso para a paz, segurança e cooperação mundial. Ao pretender substituir a única organização com legitimidade mundial para regular os conflitos que possam eclodir, a NATO pretende fazer coincidir a sua legitimidade com a legitimidade internacional. É um enorme retrocesso à escala mundial. O mundo ficará à mercê destas potências e sobretudo dos EUA.
Quem chefia a NATO são os EUA, que têm tentado e continuarão a tentar fazer a grande parte da sua política militar por via desta organização. Dentro da NATO os EUA têm como aliado todo um conjunto de países, alguns deles igualmente grandes potências como a Alemanha, Inglaterra e França.
Cabe, por isso, deixar claro que Portugal não pode estar numa organização em que tenha que alinhar em todas as decisões que ela tome. Se as decisões da NATO não têm em conta os interesses dos seus membros, estes não têm de as defender, nem de alinhar com elas. Portugal não tem qualquer interesse em fazer guerra à Jugoslávia, não devendo alinhar na agressão a um país soberano cujas fronteiras são reconhecidas por toda a comunidade internacional.

O que está em causa

O que está em causa no Kosovo e na Jugoslávia, ao contrário do que afirmam Clinton, Blair, Schroder, Solana e Gama, não é uma catástrofe humanitária, pois, a todas as luzes, uma catástrofe não se combate originando uma monumental catástrofe como é o caso do dilúvio de mísseis e bombas que a NATO descarrega sobre a Jugoslávia.
O que está em causa é a soberania de um país que dentro das suas fronteiras tem problemas e cuja solução passa pelo respeito da minoria albanesa, como de outras minorias. Mas não se pode impor, em nome dos interesses de uma minoria, a uma enorme maioria dentro de um país o ponto de vista de uma parte separatista e terrorista dessa minoria. Tal é inaceitável. E é ainda inaceitável que em nome dos supostos interesses dessa minoria a NATO queira impor à Jugoslávia a presença de tropas destes países. É isto que está em causa.
A intervenção militar não se destina de modo nenhum a proteger os direitos da minoria albanesa, a não ser que os ditos interesses da minoria albanesa valham toda a tragédia que vive a imensa maioria jugoslava. O que NATO pretende é ter tropas no Kosovo, na Jugoslávia. Só isso explica que Madeleine Albright tenha imposto em Rambouillet um plano que conduziria a breve prazo o Kosovo a uma secessão, salvaguardada com a presença de tropas da NATO. É possível, é imaginável, dois estados albaneses, um fora da Jugoslávia e outro na Jugoslávia? Como pode a NATO falar de tragédias humanitárias quando é cúmplice de enormes tragédias que varrem Timor-Leste, Angola, Curdistão, Palestina, Sahara Ocidental e Chipre ?
Portugal deve retirar os seus aviões e os seus militares desta aventura. O governo português decidiu mal e à revelia da Assembleia da República, alegando que Portugal estava a participar numa acção humanitária. Como é possível semelhante desaforo? Como é possível dizer que Portugal não participa nas acções militares porque os seus aviões não bombardeiam, apenas se limitam a acções de reconhecimento? Acaso há bombardeamentos sem acções de reconhecimento?
É tempo de parar a participação nesta aventura e nesta guerra ao serviço dos interesses dos EUA e outras grandes potências. Os problemas dos Balcãs não se resolvem com bombas, por muito inteligentes que elas sejam. As bombas, os mísseis que caem sobre a Jugoslávia, destroem e matam. Não resolvem nenhum problema. Agravam todos os que já existiam e trazem novas catástrofes, a não ser que não sejam catástrofes humanitárias porque os mortos são jugoslavos...
A guerra à Jugoslávia pretende inaugurar um novo (velho) ciclo nas relações internacionais: o ciclo do mais forte. Outrora a Inglaterra imperial mostrava a bandeira por esse mundo e todos se deviam vergar. Querem agora a NATO e os EUA impor uma nova ordem na qual lhes baste mostrar os mísseis para que todos se rendam. É perigosa e criará seguramente uma enorme desestabilização, mas tal como a velha ordem foi derrotada esta nova velha também o será. Os países e os povos não o vão aceitar, aliás já não o estão a aceitar.


«Avante!» Nº 1322 - 1.Abril.1999