Pela paz. Contra a guerra


Domingo de Páscoa foi o dia escolhido pelo Primeiro Ministro para «informar» os portugueses que o governo a que preside estava envolvido, há doze dias, numa guerra de agressão contra um outro país. Usando a máscara adequada ao dia, Guterres confirmou que a hipocrisia beata constitui a matriz da sua prática e do seu discurso político. Após doze dias de sepulcral silêncio - como se apoiar e participar nos bombardeamentos à Jugoslávia não passasse de um mero acto de diplomática gestão corrente - Guterres veio agora dizer-nos que esta foi a 5ª vez que abordou publicamente a grave matéria. Garante-nos ele que já por quatro vezes se dirigira aos portugueses explicando as razões que o levaram a (sem ouvir o Parlamento) envolver Portugal nesta agressão contra um estado soberano - agressão decretada pelos EUA (à revelia da ONU) e executada pela NATO (em flagrante violação da sua própria Carta). E se ninguém o viu ou ouviu nessas quatro pós-anunciadas aparições... é porque, ou estamos todos cegos e surdos ou andamos todos distraídos. Ou então é porque o Primeiro Ministro, stressado por efeito dos vários casos que desabaram sobre o seu governo, anda a falar sózinho e, ensaiando ao espelho por quatro vezes a declaração ao País, se esqueceu, afinal, de a representar nas televisões.
Em todo o caso, a deprimente exibição de subserviência face aos EUA, os doze dias de silêncio, a oração de Domingo de Páscoa e as decisões entretanto tomadas, configuram da parte de Guterres uma postura para a qual a qualificação de irresponsável é demasiado benévola.

Depois de, maquinalmente, nos desejar «uma boa Páscoa», Guterres começou por exibir os seus piedosos sentimentos humanitários, informando da decisão do Governo de acolher para já uma «primeira leva de 1500 refugiados». Ou seja: num gesto «humanitário» despejam-se toneladas de bombas que destroem, matam e obrigam milhares de pessoas a abandonar as zonas bombardeadas e depois, num gesto tão «humanitário» como o primeiro, para sossegar quaisquer vagos resquícios de problemas de consciência, gastam-se uns trocos na ajuda aos refugiados. Num Mundo dominado pelo grande capital, e ao qual a economia de mercado, por si só, se diz conferir incontestado estatuto democrático, os «direitos humanos» podem ser adquiridos em qualquer super mercado e podem até, na pia versão guterrista, ser violados mediante o pagamento da respectiva bula. O Primeiro Ministro exorbitou na hipocrisia e no farisaísmo. A lição de «história» com que nos alvejou (num improviso de olhos postos no visor) pecou por lacunas de tempo, de espaço e de factos e culminou, como estava previsto, na tenebrosa «limpeza étnica», nesse «crime contra a Humanidade» a que a benemérita NATO decidiu pôr cobro despejando toneladas de bombas sobre o território e procedendo a uma humaníssima limpeza multi-étnica.

Dois dias antes da declaração de Guterres fora a vez do Ministro Gama nos ter vindo dizer das suas razões. E a verdade é que, se Guterres logrou superar Blair na sua qualidade de o mais serviçal de todos os serviçais de Clinton, Gama ultrapassou largamente os dois embevecidos admiradores do imperialismo americano: vendo-o e ouvindo-o, dir-se-ia estarmos perante um daqueles porta-vozes do Pentágono - frios e indiferentes à verdade ou à mentira, dizendo o que lhes disseram que era necessário dizer. «É preciso que a Jugoslávia aceite negociar a sério e de forma construtiva» - disse Gama, querendo com isto dizer: «A Jugoslávia tem que aceitar a bem ou a mal os ditames do governo dos EUA». (E foi neste registo de criado de falcão que Gama se pronunciou sobre as recentes propostas de paz de Milosevic).
Dois minutos depois da declaração de Guterres, Durão Barroso comentou a dita. Apresentado como «o novo líder do PSD» (de facto, para o ser falta apenas o insignificante pormenor de o congresso laranja o eleger como tal...), Barroso esteve à altura de Guterres: na pose pascal, na forma e no conteúdo do discurso. «O que interessa é saber se Portugal está unido quanto ao essencial e agora fica claro que sim», ou seja, Barroso e Guterres estão unidos, logo Portugal está unido..., por isso «fica claro que Portugal tinha o dever moral e o dever político» de apoiar e participar na guerra. Almas gémeas no que toca à política nacional, Guterres e Barroso são-no também em matéria de política externa.

Entretanto, a «acção humanitária» prossegue e promete intensificar-se. A partir do momento em que se considera que «o que está em causa, neste momento, é o prestígio dos EUA, é o prestígio da NATO e que, por isso, o inêxito desta guerra feriria perigosamente a imagem dos Estado Unidos no Mundo»( isto é, enfraqueceria a sua imagem de dono e polícia do Planeta), é de prever que a selvajaria dê um perigoso passo em frente. Acresce que o chamado «exército de libertação do Kosovo» - criado e armado pelos EUA com o fim de cumprir ali papel semelhante ao desempenhado pelo exército da Croácia - se revelou incapaz de responder aos desígnios do imperialismo norte americano. Assim, a «acção humanitária» de que fala Guterres, repetindo Clinton, traduz-se cada vez mais no bombardeamento daquilo a que a NATO chama «alvos militares»: bairros residenciais, pontes,fábricas,centrais eléctricas, condutas de água, estádios de futebol... Por isso Barroso e Guterres, com pio fervor, defendem a dita «acção humanitária», em nome «da democracia, da convivência, da tolerância» e demonstrando que, ao contrário do que se possa pensar, o cinismo e a hipocrisia não têm limites.

A grave tragédia humana que é a guerra contra a Jugoslávia e os perigos que toda aquela situação configura para a paz e a segurança na Europa e no Mundo, impõem com cada vez maior premência a necessidade de dissolução dessa sinistra máquina de guerra e de morte que é a NATO. Impõem, igualmente e de imediato, o fim da agressão à Jugoslávia. Impõem, ainda, que o governo do PS assuma a condição de governo português substituindo, na primeira linha das suas preocupações, a vergonhosa postura de submissão aos interesses dos EUA pela defesa dos interesses de Portugal. Impõem, finalmente, o desenvolvimento de um amplo movimento popular contra a guerra e pela paz, pelo fim imediato da participação das Forças Armadas portuguesas na agressão - restituindo-lhes as funções e o lugar que conquistaram em 25 de Abril de 1974.


«Avante!» Nº 1323 - 8.Abril.1999