Ao olhar o passado, preocupo-me com o humano

Entrevista com Borges Coelho
conduzida por Lígia Calapez


Um optimista céptico. É assim que o historiador Borges Coelho é considerado por alguns dos seus alunos. O próprio confessa-se, entretanto, heterodoxo impenitente. Classificações necessariamente imperfeitas que nos desafiam para um melhor conhecimento da sua já extensa obra

Numa fase da vida em que ao muito já feito há que somar o muito ainda por fazer, fomos falar com Borges Coelho. Sobre a obra, os trabalhos entre mãos, as ideias. Projectos em andamento não faltam, é a feliz conclusão desta breve entrevista.

«Avante!»Ao longo da tua vida, tens vindo a desenvolver uma multiplicidade de actividades, embora com dominância da investigação histórica. Que denominador comum entre estas várias facetas e interesses?

Borges CoelhoO denominador comum está no sujeito, nas interrogações que a marcha dos homens e o dia a dia lhe suscitam. As interrogações poucas vezes afloram à superfície do texto mas influenciaram-no profundamente. No caso da história, a atracção e as interrogações acompanham-me desde o primeiro encontro com
Fernão Lopes, pela mão de Rodrigues Lapa, ainda na instrução primária. Depois, se a história veio a ser a escrita dominante, muito se deve às circunstâncias, por vezes dolorosas, da minha própria vida.

Em que medida é que a actividade literária, política, as preocupações de ordem filosófica, se reflectem no teu trabalho de historiador?

A escrita identifica-nos. Se escrevo deste modo e não doutro, deve-se à própria natureza. Como sabes, o meu primeiro livro foi de poemas, com um título floral e inocente "Roseira Verde". A poesia acabou por se submergir nalguma cor e luz do discurso histórico. Aliás, mal vai a esse discurso quando se fica pela caneta atrás do orelha do velho amanuense. Ao olhar o passado, preocupo-me com o humano e por vezes os episódios do quotidiano impõem-se como despojada e fortíssima literatura. Quanto à política, ela constituiu uma actividade quase exclusiva durante alguns anos da minha vida. Convivi então estreitamente com jovens, com trabalhadores, com intelectuais e sofri na pele o peso do universo político concentracionário dos tempos da ditadura fascista. Essa vivência ajudou-me a compreender melhor os meandros da política na análise dos tempos passados. No que respeita à filosofia, escrever história não é amontoar factos sobre factos. É necessário prendê-los com conceitos para uma melhor adequação entre a realidade e a escrita dessa realidade que nunca coincidem.

"A filosofia exprime o acordar da consciência do homem". Qual a marca da filosofia na tua obra? Poderás dar-nos exemplos concretos?

Uma parte significativa dos meus textos abordam filósofos como Espinosa, Leibniz, Marx. Mas, ao fazê-lo, procuro encontrar neles as marcas do seu tempo, os estímulos a que a sua obra deu respostas. No campo propriamente historiográfico, quase em todos os meus textos aparece a preocupação de pensar o ofício de historiador, por exemplo no "Manipulador do Tempo" em Ensaios III. E a filosofia está sempre presente no plano, na estrutura do discurso, no atar das inferências e das conclusões.

Como avalias o teu contributo para a renovação dos estudos árabes e islâmicos?

Não me cabe a mim inferir nada. Creio apenas que a publicação de centenas de páginas de autores islâmicos que viveram no nosso território abalaram bastante a consciência dominante neo-goda e monástico-senhorial. Hoje já se exclui menos o passado islâmico das fotos de família. E o trabalho dos arqueólogos, principalmente do grupo de Cláudio Torres, em Mértola, tem dado muita visibilidade a esse nosso passado.

A história da cidade de Lisboa surge como o teu mais actual tema de estudo. Porquê?

Lisboa, desculpa o adjectivo, é fantástica. Estão sempre a acusá-la do que não é. Confundem o chamado Terreiro do Paço, isto é, o governo, que o Terreiro é magnífico, com Lisboa. Se hoje somos uma nação independente, devemo-lo em boa medida à cidade. E que dizer da sua beleza? Basta vê-la, voltada para o rio, iluminada por um raio de sol abrindo num céu com nuvens. Há milhares de páginas escritas sobre a história de Lisboa mas continuamos a conhecê-la mal. Boa parte da minha vida decorreu aqui. Esta cidade é a minha pátria. Daí a necessidade que sinto de a conhecer melhor. Isto sem renegar de modo algum o meu pátrio lar transmontano onde ficaram os ossos dos meus antepassados, conhecidos e ignorados, alguns porventura das tribos que pagaram a construção da ponte romana de Chaves…

Como sentes o teu trabalho enquanto professor?

É um trabalho gratificante. Liga-nos à juventude e à vida. Obriga-nos a aprofundar, a discutir, a confrontar. Sempre me senti um aluno mais velho. Mas quando intervenho, sinto sobre os ombros a responsabilidade do actor que entra em cena. Os últimos governos têm desvalorizado o papel social dos professores. É possível sem eles uma sociedade mais culta, mais harmoniosa, mais humana?

As preocupações sociais marcam a tua vida e a tua obra. Como as vives enquanto historiador? Em que medida é que se têm vindo a reflectir nos temas de estudo escolhidos, nas formas assumidas pelo teu trabalho?

A história social, a história das mentalidades e a história política estão no cerne do discurso histórico. E o económico? Deixa as suas marcas em todas elas. Comecei na Idade Média influenciado pela preocupação das origens. Depois, os temas resultaram em grande medida da minha actividade académica.

Que lugar ocupam na tua obra as minorias e os marginalizados?

Um lugar importante mas não o principal. Depois, há minorias que antes foram maiorias. É o caso dos muçulmanos medievais. É claro que a ideologia tentou matar os mouros todos e aos que escaparam desterrou-os para o outro lado do Mediterrâneo. Mas sobraram muitos mouros por muito que pese à "pureza cristã e neo-goda". A minoria judaica foi sempre minoria mas após a conversão forçada constituiu uma minoria particularmente activa e poderosa na evolução da nossa época moderna. Quanto à minoria dos negros, ela marcou também a nossa cultura, a nossa casa, a nossa vida doméstica..

Que reflexos poderá ter na nossa vida, hoje, saber ouvir os gemidos das vítimas de outrora, nomeadamente das vítimas da Inquisição?

Obriga-nos a sentir a realidade mais de perto. Muito do discurso histórico assenta hoje em abstracções, em números ou então na leitura do discurso justificativo dos vencedores. Ao lerem esse discurso, sem o integrarem no contexto, aceitam como verdadeira a mensagem ideológica do passado e até a sua pertinência nas batalhas do presente. Tomemos o caso da Inquisição. Ainda hoje não faltam vozes a defenderem a sua necessidade e a brandura dos seus costumes. Ah, sim? Então desçamos ao concreto, ouçamos as vítimas, as testemunhas e os carrascos. Mas ouçamos as suas próprias vozes, os seus gemidos nesta velha língua portuguesa.

Poderias contar-nos algumas histórias em torno da tua tese sobre a Inquisição em Évora?

Como sabes, a "Inquisição de Évora" constituiu a minha tese de doutoramento. O trabalho provocou muitos engulhos ao júri. Mandaram emissários para adiar, para emendar. Os gritos das vítimas e algumas páginas de sexo que envolviam membros do clero punham alguns cabelos em pé. Segundo me contaram, de fonte muito segura, alguém do júri procurou um alto dignatário da hierarquia da Igreja para dizer de sua justiça. O dignatário, homem honesto, leu e respondeu: - "se isto é verdade, o que é que havemos de fazer?"

Como é que a actualidade é marcada por esse rio subterrâneo que percorre a nossa cultura?

É um rio com muitos afluentes. Já falamos de negros, de mouros, de judeus. E em todas as épocas, o mais profundo não corre à superfície. Os autores mais incómodos são marginalizados, mesmo quando se evoca o nome de Deus, neste caso o do autor, em vão. Lembremos Fernão Lopes, Aquilino e tantos outros. Por outro lado, autores há que só agora chegam à flor da água como a "Fastigimia" de Tomé Pinheiro da Veiga. Outros não chegarão nunca à superfície como é o caso da tradução para linguagem portuguesa de Livros do Velho Testamento, levada a cabo pelo cristão-velho Gil Vaz Bugalho, ambos queimados em Évora no auto de fé de 1551.

Na tua lição sobre Lisboa na primeira metade do século XVIII, fizeste referência a situações que poderiam acontecer hoje. Como vês a história em termos de evolução?

Não há evolução em linha recta e por patamares pré-concebidos. Não há um esquema, uma ideia, um processo em que a realidade se iria vazar no futuro como num molde. Essa é uma história da carochinha. A realidade e a vida abrem caminhos insuspeitados e o nosso conhecimento do passado não é eficaz na prevenção dos acontecimentos futuros. Fornece pistas, fundamenta palpites. E é trágico impor o futuro. Quanto ao passado, a esse, para o captar no seu movimento, para o compreender, temos de envolvê-lo em conceitos, em patamares que a realidade vai dia a dia testando e infirmando.

Enquanto historiador, e em termos metodológicos, que nos queres dizer sobre a visão dos acontecimentos como um todo, o papel determinante do questionar?

A realidade humana é um todo. E é pelo todo que alcançamos uma visão mais nítida da parte. Mas pela nossa própria estrutura mental, só podemos conceber o todo pela parte. Desde logo, há algo que nos escapa. Ao estudar a história de Portugal ignorando a História Universal, faltar-nos-ão fios explicativos essenciais e tenderemos, numa visão provinciana, a inflaccionar os acontecimentos domésticos. Quanto ao questionar, está na base da investigação científica. Claro, o questionar pressupõe a procura e o encontro dum ponto de chegada. Mas não há encontros definitivos. A verdade científica está sempre um pouco mais adiante.

Como valorizas o papel do comportamento humano e da consciência dos homens, de par de outros factores, nomeadamente os económicos?

A dignidade do homem é inseparável da ética, isto é, da assunção de regras e valores e do juízo da consciência sobre a relação entre a prática e a proclamação desses valores. No processo histórico, a ética, sempre proclamada, é minada e subvertida pelo jogo dos poderes. Creio que a pergunta pretende saber se o comportamento humano é eficaz para atingir determinado programa, determinado fim. O comportamento humano não é a única variável. A acção política resulta de um somatório de forças e vontades contraditórias. Quando falo noutras variáveis tenho presente a concepção dos economistas clássicos e de Marx de que a necessidade primeira das sociedades humanas é a da reprodução das suas condições de existência. Mas há outras variáveis: a determinação pelas tradições e crenças colectivas, a própria acção dos elementos da natureza. São extremamente redutoras as concepções que colocam o económico isolado na base. Por mim, encaro o social como o todo em que se interpenetram as estruturas familiares, sociais e políticas, o económico, o mental, podendo em qualquer momento uma das variáveis ser a decisiva.

"De como os historiadores matam mais muçulmanos do que os guerreiros afonsinos" – é uma expressão utilizada por ti em "O Independente" (20/9/91). É uma imagem provocatória? Realista? Qual o seu conteúdo?

É uma afirmação provocatória mas que se apoia na realidade. Boa parte da historiografia portuguesa ignorou a existência dos muçulmanos como sujeitos da nossa história. Muitas vezes até parece que os mouros só existiram no imaginário popular. Ainda há poucos dias saiu uma Cronologia que cobre os acontecimentos medievais ocorridos sob o domínio cristão mas esquece "naturalmente" os episódios relacionados com o passado muçulmano.

Em 10/87 disseste ao "Diário do Alentejo" que "a grande lição a tirar da Inquisição é a de aceitarmos o direito á diferença". Queres comentar? O que é, hoje, o direito á diferença?"

A diferença, o desigual, o contraditório são essenciais para a sobrevivência da própria vida. O pensamento único é anti-natura, impede o livre movimento das ideias, a sua criatividade e só pode manter-se mediante uma repressão asfixiante como a inquisitorial. Os gregos exaltaram a razão. Na idade média, muçulmanos, judeus e cristãos prenderam a razão à fé. Na época moderna, alguns pensadores como Espinosa consideraram que a paz do Estado só pode conservar-se pela liberdade de pensamento. Hoje o direito à diferença envolve uma luta diária que consiste essencialmente em aceitarmo-nos como somos, brancos negros ou amarelos, católicos muçulmanos ou judeus, conservadores ou comunistas, e aceitarmos naturalmente os outros na sua individualidade. Evidentemente, tal não significa que tenhamos de esconder ou esquecer na gaveta os juízos éticos ou de não reprovar e combater concepções e práticas que atentem contra a dignidade do homem.

Queres falar-nos das agruras e alegrias que te tem trazido a tua heterodoxia?

Alguns alunos consideraram-me um optimista céptico. Por mim, confesso-me heterodoxo impenitente. Das ortodoxias reza a história que travam o novo e castram a beleza. Quanto às agruras e alegrias, não vale a pena falar em "vale de lágrimas". Deixemo-lo ficar na "Salvé, Rainha".

Que destacarias mais no conjunto da tua obra, até hoje? Qual o trabalho que te marcou mais?

Não sei o que responder.

Perspectivas – que outros trabalhos tens entre mãos, de que nos queiras falar?

Projectos em andamento não faltam. Assim a cabeça e o tempo não me atraiçoem. Para já, há uma novela no prelo "Tempo de Lacraus". E alguns ensaios estão prontos para publicação, entre eles um dedicado a Fernão Mendes Pinto.


«Avante!» Nº 1323 - 8.Abril.1999