Quem assassinou
Rosemary Nelson?

Por Manoel de Lencastre


A morte da distinta advogada e amiga do povo, Rosemary Nelson, causou emoção, dor e revolta em todos os meios ligados à luta dos republicanos, católicos e nacionalistas na Irlanda do Norte e chocou todos os que acompanham essa luta, internacionalmente. Constituiu um profundo golpe no processo de paz, já de si ferido em tantas outras ocasiões, quando é altura de comemorar o primeiro aniversário do Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998, que tantas esperanças causou.

Rosemary Nelson contava 40 anos e era a defensora suprema da causa dos direitos humanos na Irlanda do Norte. Era a advogada robusta e corajosa que abraçava a causa dos desfavorecidos e dos que sofriam a opressão britânica, dos que jaziam nas prisões. A sua figura tomava formas gigantescas, apesar de ser uma mulher de pequena estatura física. Quem a conhecesse superficialmente, não podia imaginar o que ali estava de capacidade para oferecer sem nada esperar receber, em nome de uma causa, a da Irlanda republicana e livre, que era também a sua. Como seria de esperar, a senhora Nelson concentrou sobre a sua esguia figura o ódio mortal da reacção fanática e daqueles que se intitulam como «loyalists» (lealistas) em relação à Coroa britânica; da própria Polícia de Ulster, a sinistra, temível, Royal Ulster Constabulary.

Manobras suspeitas

No domingo, 14 deste mês, Rosemary regressou a casa com o marido (Paul) após um fim-de-semana na província de Donegal. Os filhos, Christopher (13 anos) e Gavin (11) viajavam em França integrados numa excursão da escola que frequentavam. A filha, Sarah, (8 anos) acompanhara os pais. Mas o regresso começou por ficar marcado por sinistros sinais. A Polícia movimentava-se em grande número na zona residencial onde viviam os Nelson. Tropas inglesas executavam marchas e patrulhas desnecessárias. Helicópteros do exército britânico sobrevoavam a casa da famosa advogada, no Kilwilkie Estate, em Logan, província de Armagh. A presença destas aparatosas forças militares e policiais manteve-se durante toda a noite de domingo para segunda-feira, a senhora Nelson saiu de casa para dirigir-se ao escritório da sua firma de advocacia. Manobrou o BMW em inversão de marcha descendo a alameda ajardinada conducente à estrada. Quando atingiu a rua em Ashford Grange, a bomba criminosa que mãos invisíveis haviam colocado sob a viatura explodiu, destruindo-lhe as pernas e deixando o carro num montão de destroços. Os bombeiros chegaram ao local da atrocidade, rapidamente. Levaram-na para o Hospital de Craigavon, mas Rosemary expiraria duas horas mais tarde. Logo a seguir surgiram bandeiras negras em todo o Ulster republicano e católico. Dísticos, expunham o pensamento do povo: «Rosemary Nelson foi assassinada pela RUCe pelo RIR(Royal Irish Regiment)». Mas o grupúsculo de gangsters lealistas «Red Hand Defenders» (Defensores da Mão Vermelha) fazia anunciar terem sido eles os autores do hediondo crime.

Quem, na verdade, assassinou Rosemary Nelson?

As forças de segurança sabiam, evidentemente, que alguma coisa se preparava. Daí, as impressionantes patrulhas e a utilização de meios aéreos à volta da residência da vítima. Mas alguém, entre a noite de domingo (14 de Março) e às 12.40 de segunda-feira, iludiu a presença daquelas forças e conseguiu colocar a bomba assassina sob o automóvel da advogada. Os «Red Hand Defenders», obviamente, sendo um pequeno «gang» que se pretende defensor de uma causa patentemente injusta, a da união entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha, não possuem meios técnicos adequados ou pessoal competente para iludir a vigilância que mencionámos. Só pessoal com recursos humanos e materiais podia ter colocado a bomba. Meios bem informados, incluindo o jornal dominical londrino, The Observer, não perderam tempo em concluir que o crime revoltante e tão friamente executado foi organizado por veteranos da Ulster Defence Association e da Ulster Resistance (organizações pró-britânicas) com o auxílio possível de elementos das próprias forças policiais e militares. Por isso, a mão do povo aponta em direcção da RUC e do RIR.

RUC nunca foi neutral

Rosemary, devido à sua corajosa e patriótica actividade, já tinha sido objecto de ameaças de morte por parte de agentes da RUC. A advogada tinha conseguido obter dos tribunais a reinvestigação das circunstâncias do assassinato do seu colega Pat Finucane, ocorrido há mais de dez anos. Isto comprometia o coração e a alma da RUC numa altura em que o próprio futuro da Polícia do Ulster está em dúvida, posto que se projecta dissolvê-la e substituí-la por uma nova Polícia mais representativa da população. ARUC, como se sabe, é formada por protestantes e considera a comunidade católica, nacionalista e republicana como uma espécie de «inimigo a abater». Sem dúvida, as frequentes reclamações da senhora Nelson contra os métodos da Polícia tinham-na colocado numa posição perigosa. Ela própria tinha já declaradoo que se considerava como alvo preferencial dos instintos de vingança policiais. Dissera que recebera agressões físicas e verbais em circunstâncias diversas. Foi devido ao perigo que Rosemary corria que muitos dos seus amigos sugeriram ao chefe dos serviços do N.º 10, Downing Street, que a célebre advogada fosse colocada sob protecção especial e incluída no rol do «Key Persone Protection Scheme» (Esquema de Protecção a Pessoas Importantes). Mas o governo britânico não aceitou a sugestão e, agora, na Irlanda do Norte, não falta quem acuse o próprio Tony Blair.

O ódio da Polícia partia de muitas direcções. Com efeito, Rosemary Nelson tinha relações estreitas com o comando do IRA em Armagh. Tinha-se oposto, de maneira frontal, às provocatórias marchas dos orangistas em plena Garvaght Road, em Drumcree, e sustentara, consequentemente, que muitos dos seus clientes recebiam ameaças de morte enquanto sujeitos a interrogatórios policiais. Perante um investigador das Nações Unidas, Param Cumaraswamy, declarara as formas de abuso que recebera, pessoalmente, dos policias da RUC. Acusara esta de não proteger um cidadão católico, Robert Hamill, quando atacado em Poradown por um grupo de gangsters unionistas e protestantes – viria a morrer dos terríveis golpes recebidos naquilo que se designou como uma interminável sessão de pontapés.

Dias após a assassínio de Rosemary, registou-se a morte a tiro do terrorista Frankie Curry, um facínora ligado aos "Red Hand Defenders". Alguns observadores sugeriram que este crime tinha tido lugar para deixar a impressão de que fora Frankie o autor do atentado que vitimara Rosemay. A eliminação deste gangster, possivelmente por um comando da Ulster Volunteer Force, poderia ter como objectivo impedir a sua prisão e a possibilidade de confessar quem o havia instrumentalizado. Mas o povo católico e republicano, os sofredores supremos de uma Europa que os não defende e ignora, sabe quem, na verdade, parece ter organizado o assassínio da grande patriota e defensora da Irlanda democrática. Nas bandeiras negras que pendem das janelas continua a poder ler-se: "Rosemary Nelson, a voz do povo, foi assassinada pela RUC".

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A evolução do Acordo
de Sexta-Feira Santa

10.04.1998
Os partidos unionistas (protestantes, pró-britânicos), nacionalistas e republicanos (católicos, pró-integração na República da Irlanda) assinam o Acordo de Sexta-Feira Santa. Este documento prevê a devolução dos poderes actuais do Parlamento britânico (Westminster) para o Parlamento da Irlanda do Norte, ou Ulster (Stormont); prevê, igualmente, a criação de um Executivo que governará o território e a criação de órgãos consultivos entre o Ulster e a República da Irlanda;

23.05.1998
Posto a uma consulta popular sob a forma de referendo, o Acordo foi votado favoravelmente por 71% do eleitorado. Os fanáticos unionistas liderados pelo Reverendo Ian Paislay, que haviam desaconselhado a aceitação do Acordo, foram pesadamente derrotados;

25.06.1998
Nas eleições para o Parlamento de Stormont, os extremistas pseudo-religiosos de Ian Paisley conseguem eleger um número suficiente de deputados. Isto impediu os mais moderados do Ulster Unionist Party de conseguirem uma maioria confortável e deixou a causa do Unionismo perigosamente colocada;

05.07.1998
Na igreja de Drumcree, em Portadown, dão-se violentos confrontos entre orangistas e nacionalistas quando aqueles pretendiam marchar ao longo da Garvaghy Road, uma zona residencial predominantemente católica e de apoio aos partidos republicanos;

12.07.1998
Num atentado com bombas incendiárias, membros de grupos protestantes orangistas incendiaram a casa de uma família católica, em Ballymoney, Antrim. Três crianças, da família Quinn, morreram carbonizadas;

15.08.1998
O grupúsculo "Real IRA", que se opõe aos Acordos de Sexta-Feira Santa, faz explodir uma potente bomba no centro da cidade de Omagh (Tyrone) causando 29 mortos e centenas de feridos;

18.12.1998
Um dos grupos armados protestantes e unionistas, o "Loyalist Volunteer Force", declara-se pronto a desarmar os seus efectivos;

16.02.1999
David Trimble, Primeiro-Ministro do Ulster, consegue sobreviver, precariamente, a um voto parlamentar crucial de ratificação de Tratados entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda;

10.03.1999
Data-limite para a transferência de poderes de Westminster para Stormont. O governo de Tony Blair não honrou os seus compromissos. A violência aumenta em quase todo o território do Ulster. Não existe acordo entre o "Sinn Fein" (republicanos e nacionalistas) e o Ulster Unionist Party quanto à grave questão do desarmamento a que o IRA se opõe terminantemente.


«Avante!» Nº 1323 - 8.Abril.1999