A TALHE DE
FOICE
A ignomínia
O milénio encerra com uma das grandes
ignomínias perpetradas neste século pelo chamado «mundo
ocidental» - tão grande, que ameaça produzir consequências
inimagináveis no futuro imediato de toda a Humanidade.
Diga-se, de uma vez por todas, que os bombardeamentos sobre a
Jugoslávia não foram desencadeados pela recusa desta em acatar
um ultimato intolerável da NATO.
A NATO é que lançou um ultimato em termos deliberadamente
intoleráveis, para conseguir um pretexto para os
bombardeamentos.
Pelo que esta declaração de guerra, decidida por uma aliança
«defensiva» de duas dezenas de países contra um que em nada
hostilizou qualquer dos seus membros, foi um acto de agressão
tão friamente premeditado como o do lobo da fábula ao matar o
cordeiro porque este, ou o pai dele, lhe poluíram a água do
regato.
Quanto à moldura humanitária em que os agressores encaixilharam
o seu ultimato, daria vontade de rir se não estivesse já a
provocar tantos vales de lágrimas. Basta comparar a situação
do Kosovo antes dos ataques da NATO com a tragédia que, sobre a
região, se abateu em pouco mais de uma semana de
bombardeamentos.
Só que a tragédia está no princípio e a sua amplitude não
tem fim. Num jogo de espelhos sinistro, a única certeza que se
tem é que nada é o que parece. Pior: tudo deixou de ser o que
parecia.
A NATO «parecia» uma aliança defensiva e guardiã dos sagrados
valores da democracia ocidental mas, de uma penada, rasgou a sua
própria carta de princípios atacando um país que não
hostilizara qualquer dos seus membros, sepultou a ONU e o
Conselho de Segurança com pazadas de desprezo, violou todas as
regras e princípios de que se afirmava o garante e afirmou-se um
instrumento totalitário e letal.
A NATO «parecia» uma aliança militar entre uma vintena de
países e provou, na brutalidade dos factos, ser um mero
instrumento de agressão planetária ao serviço dos dirigentes
dos EUA.
A NATO «parecia» um espaço de afirmação dos poderosos da
Europa a ombrear com o titã americano e revelou-se, na baixeza
da agressão à Jugoslávia, um lupanar de chauvinismos às
ordens de um imperialismo psicopata.
A agressão à Jugoslávia «parecia» o último recurso duma
aliança tolerante e revelou-se o primeiro crime dum projecto
fora-da-lei.
A guerra à Jugoslávia «parecia» uma cruzada redentora ao
serviço dos princípios e está a desenrolar-se como uma
operação de extermínio de um país.
A ofensiva contra a Jugoslávia «parecia» uma punição
devastadora de um ditador e, em poucos dias de bombardeamentos,
juntou à sua volta amigos, inimigos, um povo inteiro.
O bombardeamento da Jugoslávia «parecia» a salvaguarda da
etnia albanesa do Kosovo e transformou-a, em poucos dias de
bombardeamentos, numa aterradora multidão de párias.
O ataque à Jugoslávia «parecia» um acto pacificador e acendeu
o rastilho dum barril de pólvora do tamanho da Europa.
No meio de tudo isto, os mais altos responsáveis do poder em
Portugal, sem excepção, envolveram à sorrelfa o país nesta
ignomínia, levando-o a participar activamente na guerra contra
um país e um povo com que temos seculares relações de amizade
e cooperação e com quem, jamais, surgiu a sombra de um
contencioso.
Em nome dos «compromissos» para com uma aliança que nunca
hesitou em ignorar ou espezinhar os interesses nacionais, sem
consultar as instituições a que está subordinado ou os
parceiros políticos a que deve solidariedade nacional, sem
auscultar o país ou informar o povo, este Governo tão
dialogante, tolerante e outras qualidades em «ante» produziu a
façanha de levar Portugal a declarar guerra a um país europeu,
pela primeira vez em mais de oito séculos de História.
Pois que fique na História.
E anote-se que o dialogante, tolerante (e outras qualidades em
«ante») Primeiro-Ministro António Guterres só 10 dias depois
se dignou dirigir-se ao país para, oficialmente, o informar que
estava em guerra com a Jugoslávia.
Num discurso, aliás, onde pareceu mais preocupado em reprimir o
seu conhecido tique de ajeitar a melena, que em mobilar com nada
os seus edifícios retóricos. Henrique
Custódio