ANACRÓNICAS
Crise e impunidade


A degradação da vida política conhece, a cada dia, novos episódios. Enquanto se prepara a entronização de Durão Barroso no PSD, consumada a hecatombe da AD de Marcelo e Portas, a direita realinha os discursos com vista às europeias e, ao que tudo leva a crer, surgirá exacerbando diferenças e tensões onde, até há dias, proclamava consonância e acalmia. A indigitação de Barroso, aliás, contém em si o que de pior existe nesta sociedade da esquizofrenia mediática, do vale tudo, da desmemória como tendência. Imposta por uma oligarquia que rege, de facto, os destinos do Partido laranja, ela reduz a cinzas qualquer pretensão de democraticidade real e exprime uma confiança sem fim no oportunismo dos quadros, no acriticismo das chamadas bases, na lógica da encenação e do ludíbrio. Mais, espera da comunicação social – quase toda –, o que ela, com zelo, já começou a fazer. Ou seja, hiperbolize os méritos do novo líder, sublinhe o retorno do cavaquismo, estique a corda da contenda bipolar, anule a existência de projectos à esquerda do pântano onde se quer que a realidade caiba. E aí está, depois das cenas de alcova que pulverizaram a estratégia recém-definida num Congresso de opereta, a fase seguinte do desatino.
Enquanto isto, o Governo prossegue mergulhado numa crise cujos contornos assumem proporções de toda a gravidade. Por muito que pareçam colocados entre parêntesis, os escândalos, os erros, as crispações e os silêncios comprometidos permanecem. À incompetência do ministro da Defesa, sempre pronto a revalidar práticas que foram o timbre da ditadura que serviu, junta-se agora o cenário de intriga, ilegalidade e de desforço em que se envolveu. Assuntos de Estado em domínio sensível aparecem tratados com a pequenez e o despudor dos que se julgam impunes. De resto, é essa sensação de impunidade que permite quebras do segredo de justiça, declarações públicas da estirpe das proferidas por altos responsáveis das polícias, o jeito leviano de Vera Jardim perante o colapso de um sistema que se move sob sua égide. A mesma que ditara, aliás, comportamentos idênticos, em emergências idênticas, por parte de outros colegas do Executivo.
Os portugueses abrem os jornais e, prevenidos ou não quanto ao que cada um representa no actual quadro de confrontos, ficam a saber que a anomia e a podridão alastram, campeia o negocismo, cresce a baixeza nos objectivos e métodos. Foram a JAE e a EXPO, são hoje a Universidade Moderna e o SIS. Amanhã explodirão casos e casos de tráfico de droga e armas, prostituição, branqueamento de capitais. Qual a eficácia do combate ao crime organizado? Que resposta dão a esta pergunta nada retórica as magistraturas – entregues a contrabater obsessões, pundonores, ninharias – e as entidades encarregues da investigação judiciária?Amanhã descobriremos que apenas se ergueu uma ponta do véu sobre as guerras das maçonarias e as actividades de vários dos corpos secretos que ameaçam a nossa fisiologia colectiva. Amanhã dir-nos-ão, de forma compungida, que afinal a violência alastra. Como aceitar, diante de uma tal desordem, a passividade do Primeiro-Ministro, algures na bruma das mil viagens e de um embaraço que a todos penaliza?
Não se reclama do Governo qualquer autoritarismo, qualquer incursão precipitada e imprópria no terreno dos acontecimentos. Não se sugere, por exemplo, que irreleve a autonomia da Judicatura ou do Ministério Público para impor comportamentos e afirmar o primado da normalidade institucional. Mas exige-se-lhe tempestividade e rigor nos actos a que não pode furtar-se, clareza democrática, estudo dos problemas, qualidade das decisões. Terá sido isso o que ocorreu aquando da primeira escolha do sucessor de Fernando Negrão?Na tentativa de dar a entender que o panorama da Justiça em Portugal se não acha à beira do abismo?
Se aos dados de actualidade se juntar o que ocorre, ou não ocorre, em áreas como a Educação, a Saúde, a Cultura, o Ambiente, se se pensar nos estragos e ignomínias que marcam a legislação laboral proposta por Ferro Rodrigues, na atmosfera de descrença, fadiga e desleixo em que o País caiu, facilmente se concluirá pela necessidade de uma mudança no sentido da política. Uma mudança que, abandonando o conformismo e a conivência com o estabelecido, as opções neoliberais, a protagonização dos interesses do poder financeiro e o charco centrista, reabilite princípios e valores de humanização da vida, propósitos e causas que entusiasmem, o gosto pela participação cívica e pela transformação do presente. Só que, aqui, estamos a falar de um empreendimento que o PS, sozinho, sendo o que é, não levará nunca a cabo. Daí a importância dos momentos eleitorais que se avizinham. — Manuel de Melo


«Avante!» Nº 1323 - 8.Abril.1999