A guerra, Ramonet
e a castração dos
media


A agressão à Jugoslávia podia ser apenas uma violência, um caso de escandalosa violação da legalidade e da decência, uma enorme hipocrisia. Já não seria pouco. Porém, com a utilização das agruras das gentes do Kosovo como suposta justificação a posteriori para o crime internacional cometido pelos Estados Unidos sob o ineficacíssimo pseudónimo de NATO, tudo adquire tonalidades de desvergonhada provocação ao bom-senso e à elementar lucidez. Ao pé disto, as mentiras hitlerianas perante a comunidade internacional para invadir a Checoslováquia a pretexto da minoria étnica sudeta ficam, perante a História, com o ar de ingenuidades apenas precursoras.
Perante a enormidade e também o carácter evidente do embuste, as TV's, as portuguesas e as outras, dão alguns brevíssimos tempos de antena aos que denunciam o embuste ou, pelo menos, formulam perante ele significativas reticências, mas está mais que claro que a tele-informação dominante fornece uma intensa cobertura mediática à arbitrária brutalidade dos Estados Unidos, da Alemanha sua cúmplice (que finalmente tem, mais de meio século depois, a sua inesquecível Luftwaffe em operações de guerra) e dos vassalos europeus. E, contudo, são em esmagadora maioria estações «independentes», isto é, não-estatais, e por isso supostas, segundo muita gente, de darem uma informação que não desafie tão rudemente a verdadezinha elementar. A questão, bem se sabe, é que as TV's não são nada independentes, bem pelo contrário, essa é mais uma aldrabice que nem por ser constantemente repetida se torna verdade sequer aparente. Embora o seu consabido carácter de patranha signifique que deixe de ser eficaz porque, infelizmente, os olhos e os ouvidos bombardeados com repetidas mentiras têm, também eles, razões que a razão desconhece.
Esta verdadeira castração da possível independência dos media em geral e da TV em particular foi um dos temas abordados, embora «doucement», por Ignacio Ramonet, director do prestigiado «Le Monde Diplomatique», na longa entrevista que concedeu a Diana Andriga e foi transmitida às 14 horas do passado sábado, na TV2 que, como bem se sabe, é onde passa a generalidade do que vale a pena ver e, aparentemente por isso, convém à RTP preservar do olhar das multidões. É mais que justo acrescentar desde já que esta entrevista foi dos mais interessantes momentos de televisão acontecidos entre nós não apenas nos últimos dias mas também nos últimos tempos. Ramonet abordou aspectos vários do tema global da informação/comunicação, e algumas das suas palavras foram das que ficam para lembrar, talvez não tanto por uma surpreendente justeza quanto pela circunstância de serem raras, pelo menos por cá. Registemos apenas uma delas: «Não é o Estado, não é o governo, são as empresas americanas que dominam o mundo.»

Um «poder» sob pressão

Esta frase abre caminho, aliás, para um aspecto da entrevista que, por abordar um ponto crucial, pode ser o mais importante. Ignacio Ramonet reiterou a clássica enumeração de três poderes – político, económico, mediático – situando-os em regime de paridade, isto é, não estabelecendo entre eles nem prioridade nem hierarquia. Pareceu-me claro, contudo, que Diana Andringa não estava de acordo com isso e que, de resto, o próprio discurso de Ramonet introduzia diferentes graus entre os três poderes apontados. Só que o jornalista francês parecia demasiado optimista em vários aspectos; ou talvez cauteloso, o que seria inquietante. Para dizer que os jornalistas que não acatam as opções político-ideológicas dos patrões têm que abandonar os grandes media, pareceu-me ter dado mais voltas que um cão para se deitar como um dia escreveu Aquilino. Contudo, lembro eu agora, é essa dependência do jornalista em matéria de emprego (de consecução do posto do trabalho e da sua manutenção) que explica a lavagem de cérebros que a agressão da NATO está a subproduzir.
Contudo, o ponto mais importante da entrevista pareceu-me ser um outro: quando Diana Andringa perguntou se não estarão os jornalistas, com uma frequente hipercrítica à vida política democrática tal como concretamente existe (e, acrescento, não ressalvando as excepções em que essa hipercrítica não colhe), «a recriar o fascismo» sem que se dêem conta de que o fazem. É uma dúvida que a mim próprio muitas vezes visita, para a qual tenho tentado pedir a atenção em notas insignificantes a que ninguém dá importância, como é natural. Lembro-me, então, de que o poder financeiro, dono e patrão do mediático, tem todo o interesse em brandir perante o poder político a pressão de uma denúncia pública que lhe impeça veleidades de independência e lhe confira uma fragilidade permanente. Lembro-me, e fico a pensar. — Correia da Fonseca


«Avante!» Nº 1323 - 8.Abril.1999