Delegados
estrangeiros no Congresso da JCP - IV
Orlando Silva Jr.,
da União da Juventude Socialista,
27 anos, estudante de Ciências Sociais
«O Governo é refém das elites»
Como vivem os brasileiros, o que pensam, que perspectivas
de futuro têm? Orlando Silva Jr, representante da União da
Juventude Socialista, de 27 anos e estudante de Ciências
Sociais, fala da situação que se vive no Brasil e alerta para o
trabalho infantil, para a droga e a criminalidade, para o
desemprego e para a educação. «Numa altura em que os
trabalhadores estão mais limitados, a juventude pode jogar um
papel importante. A gente faz esse esforço de tentar ganhar a
juventude para sair na frente», afirma nesta entrevista ao
Avante!, a última que publicamos no âmbito do VI Congresso da
JCP.
Avante! Como caracterizas a situação social e política no Brasil?
A
situação no Brasil é complexa e delicada, porque nos últimos
anos, desde que saiu da ditadura militar, o país não encontrou
uma rota definitiva de desenvolvimento.
O projecto político que mais fôlego teve foi o do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, um projecto que se fundamentou em
modelos que já foram utilizados em vários países e que não
deram certo.
Tudo o que o Fundo Monetário Internacional mandou fazer no
Brasil foi feito. Abriu-se a economia para qualquer produto, sem
nenhuma protecção para a indústria nacional, e elevou-se as
taxas de juro. O Brasil financiou uma parte da sua
estabilização económica, manteve a moeda estável à custa de
dinheiro de especulação. O Brasil durante muito tempo foi o
campeão mundial de juros. O FMI mandou privatizar e vendeu-se
tudo. Até tenho medo que eles queiram vender o Cristo Redentor,
uma das poucas coisas que restam de património nacional!
Têm-se restringido direitos sociais e dos trabalhadores,
direitos elementares como o registo formal de carteira
(profissional), estabilidade no emprego, a remuneração de um
percentual do salário a mais para quando se trabalha em período
de férias, a hora extra, enfim, uma série de legislações do
trabalho que tinha sido desenvolvido durante muito tempo,
conquistas dos trabalhadores que este Governo retrocedeu.
Mesmo fazendo tudo isso - privatizando as empresas estatais,
abrindo mercados, pagando juros altos para atrair capital e
acabando com os direitos sociais -, o país não está crescendo,
o país não se está desenvolvendo. A única coisa que se
conseguiu fazer foi manter os preços no mesmo patamar.
O Brasil praticamente estagnou.
Exacto.
Falava-se que a década de 80 foi a década perdida, que o país
não cresceu, não se desenvolveu. Hoje já se fala da década de
90 também como a década perdida.
Depois da crise das bolsas que varreu o mundo e atingiu o Brasil
com força no ano passado, o Governo e o FMI projectam para este
ano de 1999 uma recessão de quatro pontos percentuais, o que
numa economia como a nossa é muito grave.
Como é que isso se reflecte na área social?
A economia brasileira sofre um forte processo de desindustrialização e os índices de desemprego crescem assustadoramente. O nível de trabalho formal, com registo (legalizado), é pequeno. Apenas metade dos 75 milhões de trabalhadores que formam a população activa tem carteira. E desses, diz-se que o desemprego chega na casa dos 12 por cento. Depois, no sector informal não se sabe qual é o nível do desemprego, até há tendência para que seja maior. São Paulo, por exemplo, tem um milhão e meio de desempregados.
Já para não falar dos salários baixos.
Salários que não sustentam nada! As consequências sociais são evidentes: mais pessoas na rua e não apenas meninos de rua, abandonados pelos pais. Há mesmo uma população de rua. Às vezes até gente que é trabalhador, mas que não têm rendimento suficiente para poder alugar uma casa.
Como é que essas pessoas conseguem viver? É muito complicado até em termos da higiene mínima que se tem de manter para ir trabalhar, como lavar a roupa e tomar banho.
É na
absoluta precariedade. Tem casos dantescos, que ilustram bem o
que é o capitalismo. Em São Paulo, há pessoas que saem de casa
na segunda-feira para trabalhar, dormem na rua na terça, na
quarta, na quinta e na sexta e voltam para casa no sábado,
porque o rendimento é insuficiente para poder pegar o transporte
todo o dia.
Recentemente, o Brasil firmou um acordo com o FMI no sentido de
aprofundar estas políticas, porque o Governo afirma que o nosso
problema está no déficit fiscal, que o Estado gasta mais do que
arrecada. Ele só omite o facto de que cerca de 60 por cento do
que o Estado gasta é para pagar dívida pública interna,
externa e juros. O verdadeiro problema é que é impossível o
modelo escolhido dar perspectiva, não tem saída.
Qual é a alternativa?
Em
1998, nas eleições presidenciais, pela primeira vez houve uma
união das esquerdas. Nunca conseguimos isso. Todos os partidos
de esquerda estiveram unidos em torno da candidatura de Lula da
Silva (Partido dos Trabalhadores), todas as entidades e
movimentos sociais apoiaram a candidatura, mas não conseguimos
um placard. Ao mesmo tempo ficou esse saldo da unidade política.
Agora há que partir disso e firmar alianças políticas mais
amplas, com sectores nacionalistas que não suportam mais a
situação de completa dependência e degradação da vida do
nosso povo. Enquanto cresce a crise, aumentam as condições para
que a gente aumente a mobilização.
Recentemente, têm crescido as manifestações, principalmente
dos estudantes. O desemprego tem limitado muito a acção dos
sindicatos. Os estudantes, a juventude e o Movimento dos Sem
Terra (MST) têm jogado um papel maior.
Há dois anos chegaram-nos muitas notícias dos sem-terra, na altura em que Sebastião Salgado lançou o livro de fotografias sobre o movimento. Como é que se estão a desenvolver as suas acções?
Essa é uma luta importante, porque o Brasil é um dos campeões das desigualdades, não só sociais, mas da manutenção de estruturas políticas inimagináveis. Aproximadamente 1 por cento dos proprietários de terras tem cerca de metade das terras agricultáveis. Há fazendas do tamanho da Bélgica.
E uma grande parte delas não produzem.
É, e depois uma grande parte da população que era do campo vive na periferia das grandes cidades sem perspectiva. A luta do MST pela reforma agrária é um dinamizador da economia brasileira, porque poderia permitir ocupar mais pessoas e aumentar a produção económica do país.
Porque é que isso não vai para a frente? Há o grande problema dos fazendeiros, que se opõem ferozmente, mas a reforma agrária só traria benefícios. O Governo não tem força para isso ou não quer?
O
Governo não tem força política, ele é refém das elites há
muitos anos. É difícil de compreender, porque são elites que
nem sequer alimentam um projecto próprio de nação.
Porque é que não sai a reforma agrária no Brasil? Porque as
elites que controlam o poder político não têm um projecto
próprio de desenvolvimento. Elas fazem do controlo das
propriedades, inclusive da terra, uma forma de controlo
político.
A conclusão é que as injustiças tendem a se agravar, a não
ser que a gente reuna condições para construir um outro poder
político. Esse é o movimento que nós fazemos hoje, um
movimento para pôr fim ao projecto de Fernando Henrique Cardoso.
É complicado chegar às pessoas, não é? As pessoas até concordam com vocês, mas depois na altura de votar...
O que
ocorre hoje em dia é que cresce muito a insatisfação. Por
exemplo, há dias atrás ocorreu uma manifestação no Rio de
Janeiro. Começou por ser pequena. Tinha mil estudantes fazendo
um protesto. Há muito tempo que não víamos uma reacção tão
positiva da parte da população como se viu. A gente até
brincou, dizendo que parecia um desfile de uma escola de samba. A
turma ia passando pela rua e o pessoal parava e aplaudia.
Numa altura em que os trabalhadores estão mais limitados, a
juventude pode jogar um papel importante. A gente faz esse
esforço de tentar ganhar a juventude para sair na frente.
Quais são os principais problemas dos jovens brasileiros?
É um leque de problemas. Se pudesse seleccionar, diria que o principal problema é a falta de emprego.
Mas há outros bem graves, como a criminalidade, a droga, a educação e o próprio analfabetismo.
Sim,
claro, mas eu falo do emprego, porque a partir da ausência de
trabalho há um desdobramento em cadeia de uma série de outros
problemas. Há uma gama de problemas, mas se eu quisesse escolher
de onde partir tinha de começar no emprego.
Nós sofremos ainda mais com o desemprego do que outros sectores.
Nós preenchemos trinta por cento da população economicamente
activa, mas ocupamos metade nas taxas de desemprego. Se formos
ver o nível de trabalho formal, com registo em carteira e
direitos reconhecidos, os jovens são muito menos. No mercado de
trabalho exige-se experiência, o que é impossível para um cara
que está entrando no mercado.
Existe o trabalho infantil, um problema relativamente grave,
porque retira da escola a criança na fase de formação, de
constituição intelectual e física. Conheci casos no norte do
país de jovens com vinte e poucos anos que pareciam ter uns 60.
Com essa idade estavam praticamente inactivos para o trabalho,
porque se desde os 7 ou 8 faziam trabalhos pesados, aos 20 têm
problemas na estrutura óssea que impede desenvolver outra
actividade produtiva. E não têm nenhuma protecção do Estado!
Há casos de crianças que continuam a estudar depois de começarem a trabalhar precocemente?
Essa
é a excepção da excepção. A grande maioria pára de estudar.
A média de escolaridade do trabalhador brasileiro é muito
baixa, é apenas de quatro anos. Isso não é por vontade ou por
vocação, é por imposição.
Nesse sentido, estamos desenvolvendo uma campanha pela redução
da jornada de trabalho para os estudantes-trabalhadores. Há um
movimento nacional pela redução de 44 para 36 horas semanais.
No bojo desse movimento geral estamos actuando com um projecto de
lei popular, um mecanismo constitucional em que se colecta um por
cento de assinaturas do total de eleitores (o que equivale a um
milhão e 50 mil assinaturas) e que cada um pode dar apresentar.
Isso para nós é uma forma de denúncia e uma proposta, porque
se só houvesse seis horas de trabalho por dia era muito mais
fácil trabalhar e estudar.
O problema do emprego está muito relacionado com a educação,
não só porque a necessidade de trabalhar limita a possibilidade
de permanecer estudando, mas também na medida em que, se o
Estado investe menos na educação pública, há uma pior
qualificação na escola e é mais difícil o acesso ao mercado
de trabalho. Quem tem recursos para uma qualificação melhor na
rede privada, acaba tendo uma vantagem comparativa.
A falta de emprego, combinada com a falta de educação, com a
ausência de espaços públicos... O Brasil é conhecido pelo
mundo inteiro pelo futebol. Antes em qualquer pedaço da cidade
havia um campinho para a turma jogar. Hoje em dia já não tem
mais isso. As cidades não têm planeamento, nem uma política de
estímulo da prática de desporto. Há cada vez menos espaços
públicos de lazer.
O desporto é uma das coisas fundamentais para afastar os jovens da droga e da criminalidade.
E até
a fase de desenvolvimento do corpo e da mente. Aliado a isso, há
um processo de mercantilização da cultura, há poucos espaços
de manifestação cultural popular.
Forma-se um mosaico ruim para a gente. Sem escola, sem acesso ao
desporto, ao lazer e à cultura, a gente fica às vezes com
tempo, mas sem perspectiva e sem alternativa de ocupação.
A juventude tem um certo tempo livre, mas que não é canalizado
porque não tem sequer canais para desenvolver o corpo e a mente,
para se formar culturalmente. Surge então a droga e a
violência, duas faces da mesma moeda. As drogas têm gerado uma
dependência crescente numa parcela da juventude brasileira.
Quem sofre mais com o projecto económico que se implementou no
Brasil é a juventude da periferia, que não tem emprego nem
educação. Quando cresce essa exclusão, surgem Estados dentro
do Estado. Há estruturas próprias de poder paralelo, com
segurança própria, com tribunais próprios, com regras
próprias, com economia própria, tudo em torno do tráfico de
drogas.
Assim torna-se cada vez mais difícil lutar contra a situação?
Sim,
porque há um pedaço da sociedade brasileira que não se move
pelas regras da sociedade, que tem um funcionamento à margem.
Há processos sociais sem qualquer controle, como o problema da
violência.
Você vai a um bairro de periferia de São Paulo, por exemplo, e
não tem um campo de futebol ou uma biblioteca, mas tem um
boteco. Sempre tem um boteco, então a turma bebe ou se droga e
ganha uma atitude em relação aos outros de absoluta
indiferença. Hoje há uma verdadeira guerra civil na periferia,
onde jovem está matando jovem.
Quais são as perspectivas de futuro para um jovem comum?
Depende de onde ele vem. Há um pedacinho bem pequenino de gente bem nascida...
Mas essa é uma minoria.
Eu daria o meu exemplo. Eu sou de uma família pobre de uma cidade pobre, Salvador da Baia. Eu sou a excepção da minha turma de escola. Tive oportunidade de conhecer a política e de permanecer na escola por conta de apoio familiar que a maioria não tinha. Enquanto continuei a estudar, os meus colegas tinham de ir trabalhar. Enquanto fui para a universidade e abri os meus horizontes, eles tiveram de casar porque as namoradas ficaram grávidas por falta de planeamento sexual.
Como vai ser a vida dos teus colegas, daqueles que constituem os casos típicos, daqui a 10, 20, 30 anos?
A
tendência é marcar passo, é continuar a sua vida e a dos
filhos igual ou pior do que antes. Há uma música do Chico
Buarque de Hollanda, «Pedro Pedreiro», que fala desse processo.
Ele diz que Pedro está esperando um trem, que a sua mulher está
esperando um filho para esperar também.
A vida hoje é marcando passo e lutando para ter as mesmas
condições, que são muito ruins. Tem um posto de trabalho, mas
a tendência é que esse trabalho exija mais ao jovem do que
exigiu ao seu pai e que lhe pague menos. Mas não tem
alternativa.
Que implantação têm as ideias de esquerda no Brasil?
Hoje temos uma situação desfavorável, porque os conservadores têm uma força desproporcional.
Mas as pessoas vivem cada vez pior.
Vivem
pior, mas não vêem na esquerda uma alternativa. Inclusive,
mantêm esses caras no poder porque têm medo. O Brasil acabou de
sair de uma experiência relativamente traumática, de 25 anos de
ditadura militar. Isso fez com que as pessoas ficassem mais
retraídas para fazer mudanças mais profundas, vivendo reféns
das elites que controlam absolutamente todos os meios de
comunicação.
Um problema que a gente tem é mesmo chegar às pessoas. Nove
famílias do Brasil controlam 90 por cento das comunicações do
país.
Como é que conseguem passar a mensagem?
- Muito
precariamente. O PT, o maior partido de esquerda, tem 10 por
cento do eleitorado e dirige dois dos 27 estados do Brasil. O
Partido Socialista Brasileiro possui a direcção de mais dois e
o Partido Democrático Trabalhista dirige outros dois. Ou seja,
seis em 27. É pouco, mas para nós é alguma coisa, porque antes
das últimas eleições o PT só dirigia um.
A proporção das opiniões de esquerda é muito reduzida. Faz-se
um esforço de construção nas bases. Uma coisa boa foi termos
conseguido construir um Forum Nacional de Lutas, que reúne todas
as entidades do campo popular e procura fincar raízes mais
profundas junto ao povo.
Uma das grandes preocupações dos jovens é a ecologia. No Brasil, onde inclusivamente se situa a Amazónia, há essa preocupação com o ambiente ou é apenas uma entre muitas?
É uma
entre muitas, mas em algumas regiões, como a amazónica, há uma
sensibilidade maior. A Amazónia é uma região riquíssima, mas,
tal como não há um projecto para o nosso país, também não
há um plano para desenvolver a Amazónia de forma equilibrada
ecologicamente e de modo auto-sustentável. Não podemos cercar a
Amazónia e deixar lá sossegado o pulmão do mundo. É preciso
incorporar a população que vive na região em iniciativas
económicas que permitam que o ambiente não seja degradado.
Não é isso que acontece. O que o latifúndio faz é o derrube
de madeira indiscriminadamente. A queimada é uma coisa bárbara,
mas é utilizada pela população para prepara o solo para a
plantação. A consciência ecológica ainda está aquém do que
deveria ser.
O Brasil ainda tem o problema das tribos índias.
- Há regiões índias que não são demarcadas, ou que são mas que o Governo não garante qualquer segurança e que acabam por ser ocupadas ilegalmente. Aí também se vive a falta de assistência do poder político. Muitas tribos são engolidas pelo desenvolvimento desordenado. Índios viciados em álcool, por exemplo, é uma consequência natural de um contacto de aproximação sem critério.