Cartas
marcadas
no jogo democrático
Por Zillah Branco
A globalização do sistema de mercado, dito democrático, distribuiu as formas perversas de domínio totalitário por todo o mundo e concentrou as riquezas e o poder nas mãos de uma elite que não se envergonha de ter como lideres um Clinton e os seus seguidores-subordinados de várias nações. Estabeleceram como verdade que governar significa reger as altas finanças a nível nacional em consonância com os centros internacionais de poder e que as populações devem receber o mínimo necessário para sobreviver e agitar o mercado de consumo de quanta inutilidade se puder vender.
Os governantes
funcionam como as varinhas mágicas de fazer sopa, ou os sprays
que misturam os odores, para que tudo pareça homogéneo e
aceitável. Com este passe de mágica as poluições se diluem,
desde as formas de corrupção que corroem o património público
às redes criminosas que condicionam a marginalização social. A
grande meta é o mercado, custe o que custar. Não há ética,
patriotísmo, humanismo, solidariedade. É o império do
individualismo perverso que usa a democracia como máscara para
enganar os incautos, explorar as crianças, roubar os idosos,
alienar os jovens, destruir as perspectivas de vida, os ideais, a
esperança.
Os Estados Unidos mandam na Europa através da NATO, mas também
do jogo financeiro e das políticas comerciais. Quando vemos a
França, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália e mais todos os que
formam a NATO aceitarem as ordens de um Presidente - que há 3
meses escapou ao "impeachment" que merecia por
falta de decoro e de dignidade - para bombardear a Jugoslávia,
perdemos um pouco mais da confiança no futuro. Ela já é
reduzida para quem vive no Terceiro Mundo onde a injustiça é o
prato diário e a impunidade a sobremesa. Mas, diante da
política expansionista do imperialismo (mesmo que lhe troquem o
nome) que nomeia os Estados Unidos, com o seu braço armado NATO,
a toda poderosa polícia do mundo, a esperança de que a
humanidade possa tirar bom proveito de dois milénios de
evolução se esvai. Estamos diante de uma ditadura globalizada
que controla os dóceis e anti-patrióticos governos nacionais.
Para usar a linguagem popular, estamos num mato sem cachorro.
Depressão epidémica
Os médicos explicam
que a depressão deve ser tratada como doença, o cliente precisa
vencer o stress, a tristeza, o desencanto com a vida, a
vontade de morrer, com o apoio e o carinho da família e dos
amigos, afastando-se dos ambientes que o deprimem. Inventam-se
mil alternativas que ajudam quem tem recursos e tempo para
tratamentos: terapias, hidro-ginásticas, danças, técnicas
orientais de isolamento e reflexão, artes marciais, as mais
variadas formas de desporto, etc. Tudo alivia, mas o cidadão
permanece sob as mesmas tensões deprimentes geradas pelas elites
dominantes na sociedade.
Mesmo aqueles que conseguem atingir a alienação transformados
em Robinson Crusoe e vivem perdidos nas matas, ou que entram pelo
mundo das drogas, ou perambulam pela Índia à procura do
nirvana, mesmo os que se fecham no mais absoluto egoísmo e
flutuam na sociedade sem querer ver o que se passa à volta, e
até aqueles que pretendem não ser políticos e só
cuidam da sobrevivência elementar, todos sofrem as pressões do
desequilíbrio mundial e estão sujeitos à depressão imposta
pelas cenas de guerra, de fome, de violência, de injustiça, que
se tornaram o emblema deste fim de século e de milénio. Para
usar o jargão da moda, a violência é emblemática deste fim
de século.
É imperativo encontrar um tratamento que esteja ao alcance
sobretudo dos mais desfavorecidos. Trata-se de uma epidemia de
desesperança e impõe-se a abertura de uma nova estrada que
aponte para a derrota dos ditadores e do sistema que os protege.
Chega de fazer vénias a quem nos rouba a dignidade de cidadãos,
a quem destroi a nossa saúde, a quem condena as novas gerações
a crescerem num mundo cruel e hostil, a quem põe em risco o
futuro da humanidade.
Remédios universais
Recordo-me sempre
das sábias palavras do saudoso maestro Lopes Graça quando via
os camaradas mais jovens entristecidos com a queda do socialismo
na Europa: "Não se deixem abater, como já vivi mais de 80
anos presenciei os altos e baixos da história. Vamos construir
um novo caminho". O seu exemplo e a sua obra, como a de
tantos outros que imprimiram a sua marca positiva na história
dos nossos povos como degraus permanentes na escada da vida,
estão ao alcance de quem quiser enfrentar as dificuldades. Em
cada sector do conhecimento existe um património que contribui
para a defesa da humanidade e que não pode ser utilizado em
benefício de uma elite egoísta e privilegiada.
Como a humanidade superou a depressão que a atingiu em tantas
fases da história passada? Unindo-se em função de uma
estratégia de luta para a construção de uma situação nova,
criando uma alternativa à podridão que lhe era imposta,
renovando a esperança que alimenta a vontade de viver.
A grande dificuldade que hoje existe é vencer a inércia que
domina as pessoas através das depressões nervosas e do
desencanto com os responsáveis pelo comando das sociedades. O
poder exercido através dos meios de comunicação social mina
todos os dias um pouco mais a vontade de lutar, de participar
construtivamente. No Brasil os telejornais iniciam e terminam o
dia com as notícias dos crimes bárbaros e da acção das
máfias que corrompem o poder público. O público sente um certo
alívio por não ter sido a vítima pessoal daquela notícia e
fica rezando para que "Deus o proteja".
Criação do caos
O povo brasileiro
é, por natureza e formação cultural, alegre e bem disposto.
Mesmo com essa capacidade de rir sem ter de quê, começa a
descobrir que a vida é triste e o futuro incerto. A esperança
escorrega e a depressão chega.
A denúncia do trabalho infantil expõe ao público cenas
inimagináveis: crianças de 3 anos descascando mandioca e já
com um dedo decepado, menina que aprende a escrever com os dedos
dos pés por ter perdido os dois braços na máquina onde o barro
é preparado para fazer tijolos, jovens mutilados por jacarés na
pesca artesanal, e mais milhares de crianças usadas pelas redes
de droga, de sexo, de assaltos.
O Governo elitista faz leis que proíbem os menores de 16 anos de
trabalharem, pune os pais quando os filhos não vão às escolas,
aplicam multas aos empresários que têm trabalhadores infantis.
Age cómoda e burocraticamente, e espera que a população
resolva o problema por sua conta. Preocupa-se em limpar com rigor
o pó da casa sem se preocupar com a canalização que está
rota, o telhado caindo, as portas e janelas arrombadas.
As empresas do Estado vão sendo privatizadas em troca de uns trinta
dinheiros logo entregues aos bancos que ameaçam falência. A
tão apregoada capacidade dos empresários privados para tocarem
os serviços públicos está completamente desmoralizada. No Rio
de Janeiro a distribuição de energia eléctrica sofre tantas
interrupções que as autoridades resolveram multar a empresa
Light responsável. Como se não bastasse, em Março passado
houve um apagão que atingiu 60% do país durante várias horas
causando imensos prejuízos aos cidadãos, descongelamento de
alimentos em restaurantes e mercados, perda de lotes de vacinas
nos Centros de Saúde, para não falar dos doentes que morreram
pela suspensão dos tratamentos que dependiam de máquinas, e do
aumento do número de assaltos nas ruas escuras. O problema foi
atribuído a um raio que teria caído em uma subestação, de
Baurú, o que não convenceu ninguém sobretudo porque os
serviços meteorológicos afirmam não ter caído nenhum raio
naquela região. Os de cima mentem com a maior cara de pau porque
contam com a impunidade que o poder garante. Também as redes
telefónicas, hoje em mãos espanholas e portuguesas, entraram em
colapso em todo o Estado de São Paulo: há trocas de linhas, de
contas, mudanças de número sem aviso ao utente, incumprimento
dos contratos, grandes prejuízos ao sistema de comunicação
pela internet. Um caos para o mundo que depende das
comunicações.
Enquanto essa nova forma de bagunça se instala, alastram-se as
epidemias causadas por mosquitos e, sobretudo, pela falta de
saneamento básico: dengue, cólera, febre amarela e outras que
fazem parte do tropical Terceiro Mundo onde o sistema de saúde
pública é uma ficção.
Sem pretender esgotar a lista das misérias, somam-se as formas
de corrupção que fazem parte do sistema - as propinas a
funcionários que dão andamento às exigências oficiais para
que se possa trabalhar, construir, viver em sociedade, enfim, -
que hoje atingem quantias astronómicas, verdadeiros orçamentos
ministeriais, e envolvem vereadores, deputados, militares, e
gente de todo tipo. E mais os gastos nababescos do Governo
Federal com habitações de luxo e ajudas de custo aos
"representantes do povo". Tudo isso no momento em que o
povo aperta o cinto e as verbas para saneamento básico, saúde,
educação, previdência social, segurança pública são
drasticamente reduzidas a conselho do patrão FMI.
O deputado Almino Affonso denunciou: «" O que me espanta é
a concentração da iniciativa legislativa nas mãos do Poder
Executivo, em um crescendo que parece já agora incontrolável,
reduzindo-se o Poder Legislativo a um órgão rectificador da
vontade omnipotente do Presidente da República".
"Existe uma realidade facilmente detectável se observarmos
o número de propostas que vêm tramitando no Congresso Nacional:
de 1995 até setembro de 1998, mais de 80% das proposições que
se transformaram em leis tiveram como origem o Poder Executivo,
em suas diversas instâncias, sem incluir as medidas
provisórias". E revela: " Ao longo do Governo Fernando
Henrique Cardoso, foram enviadas ao Congresso Nacional 137
medidas provisórias. Não tendo sido convertidas em lei, no
prazo requerido, foram reeditadas 2.249 vezes! Nesse contesto, as
medidas provisórias vão se convertendo em leis de facto: e
amanhã, quando o Congresso Nacional assumir a tarefa de
votá-las, serão tantos os efeitos decorrentes de sua vigência,
que já não sobrará alternativa senão aprová-las...
Consequência que não se pode ignorar: o Presidente da
República, por esse procedimento tortuoso, esbulha o Congresso
Nacional em sua principal função e transforma-se, cada vez
mais, no "legislador unipessoal"».
Um exemplo entre vários dessa desordem legislativa: todos os
carros foram obrigados a ter um kit de socorro médico que
era vendido em média por 10 reais. A polícia de trânsito
aplicou multas a quem não o tinha e divulgou ameaças pela
televisão. Depois se constatou que os leigos não devem tratar
os acidentados, estão proibidos por outra lei, mas sim chamar e
aguardar o socorro. No máximo podem evitar as hemorragias com um
garrote, o qual não fazia parte do kit obrigatório.
Então a lei foi revogada deixando a população arcar com um
prejuízo que se calcula em 250 milhões de reais. As asneiras
legisladas são tantas que até cansa referi-las. Mas o poder dos
órgãos de governo permite também outros desmandos, como por
exemplo a ajuda do Banco Central a um banco privado - Marka -
ameaçado de falência, vendendo-lhe dólares abaixo do preço. O
banco faliu e o dinheiro gentilmente oferecido pelo BC foi para
os bolsos do seu dono deixando os clientes na mão.
A origem do caos
Muito se tem dito
acerca da origem dos males no Brasil: passado escravista, peso do
colonialismo e do neocolonialismo, imensidão do território com
dificuldade de controle, etc. Estes factores terão a sua
importância, mas o principal é, segundo o professor
norte-americano Michel Chossudovsky ( ver "A Globalização
da Pobreza", Ed. Moderna, S. Paulo/Brasil 1999) a
internacionalização da reforma macro-económica que se apoia na
mão-de-obra barata e na procura de novos mercados consumidores,
e promove o endividamento dos Estados reduzindo-lhes o poder
efectivo.
No final da década de 1980, refere o autor, floresceu um novo
ambiente financeiro global com a onda de fusões em
corporações. "Investidores institucionais, corretoras de
acções, grandes companhias de seguros, etc." agruparam-se
em torno dos bancos mercantis. "... Esses administradores de
dinheiro são cada vez mais afastados de funções empresariais
na economia real. Suas actividades (que escapam da
regulamentação do Estado) incluem transações especulativas no
mercado de futuros e derivativos e a manipulação de mercados
monetários. Os grandes operadores financeiros estão
rotineiramente envolvidos em "depósitos de hot money nos
mercados emergentes da América Latina e do Sudeste Asiático,
sem falar na lavagem de dinheiro e no estabelecimento de
"bancos privados"..."
"Desde o começo dos anos 80, grandes somas da dívida de
grandes corporações e bancos comerciais dos países
desenvolvidos foram anuladas e transformadas em dívida pública.
Seguindo-se a mesma tendência, concederam-se empréstimos
multilaterais e bilaterais a países em desenvolvimento para
possibilitar que reembolsassem os bancos comerciais".
Isto explica as aparentes anomalias do governo Fernando Henrique
Cardoso que desde o início e cada vez mais privatiza a preço de
feira as empresas do Estado e salva os bancos (o seu partido PSDB
hoje é conhecido como Pronto Socorro dos Bancos, o que não é
muito diferente de Partido Social Democrata Brasileiro).
Chossudovsky afirma: " Criou-se um círculo vicioso. Os
receptores de favores do governo tornaram-se credores
do Estado. A dívida pública que o Tesouro transformava em
títulos para financiar grandes negócios era adquirida por
instituições bancárias e financeiras que, ao mesmo tempo,
recebiam subsídios estatais."... "Uma situação
absurda: o Estado "financia o seu próprio
endividamento".
Os estatutos dos Bancos Centrais "têm sido modificados para
satisfazer exigências dos mercados financeiros. Estão cada vez
mais sob a tutela dos credores do Estados. No Terceiro Mundo e no
Leste Europeu eles são amplamente regulados pelo FMI, segundo os
interesses dos Clubes de Paris e Londres."... "Na
prática, o Banco Central (que não responde nem ao governo nem
ao Poder Legislativo) opera como uma burocracia autonoma, porém
sob a tutela dos interesses das instituições financeiras e
bancárias privadas."
No capítulo referente aos problemas da África Sub-saariana, o
autor usa o subtítulo expressivo "Genocídio
Económico" e afirma: "Atribuir a culpa apenas ao ódio
tribal só exime os governos do G-7 e os credores, mas também
distorce um processo exageradamente complexo de desintegração
económica, social e política..." depois da intervenção
do FMI e do Banco Mundial para "ajudar".
Sobre a situação da Jugoslávia (antes da guerra actual)
refere: "a cronologia das numerosas iniciativas
diplomáticas é vividamente retratada; a agenda de ajuda
humanitária e de manutenção da paz das Nações
Unidas aparece com destaque nas telas das televisões de todo o
mundo. Nesse processo, as causas económicas e sociais da guerra
civil têm sido cautelosamente ocultadas. Os interesses
estratégicos da Alemanha e dos Estados Unidos não são
mencionados, a arraigada crise económica que precedeu a guerra
civil tem sido esquecida"..."Todavia, a dissolução da
Federação Iugoslava tem uma relação directa com o programa de
reestruturação macroeconómica imposto ao governo de Belgrado
por seus credores externos".
Hoje, ao presenciar a absurda invasão das forças da NATO na
Jugoslávia, a destruição do país e o genocídio dos fugitivos
de Kossovo que são empurrados de um lado para o outro pelos
emissários dos Estados Unidos e seus aliados que divulgam falsas
notícias e promovem o terrorismo vestidos de soldados sérvios,
imaginamos o que poderá vir a ser o futuro do Brasil e de todas
as nações que ousarem contrariar os desejos do poder financeiro
gerado pelo neo-liberalismo. Vamos esperar de braços cruzados
que a dignidade dos povos e de toda a humanidade seja violentada
nessa epidemia terrorista que anula todas as conquistas
humanistas dos últimos séculos deste festejado milénio?
Recordando a poesia de Nazim Hikmet: "Não vivas nesta terra
como um inquilino ou em férias na natureza. Vive neste mundo
como se fosse a casa do teu pai, acredita no trigo, no mar, na
terra, mas sobretudo no Homem".