Francisco nunca mais


Num chuvisco pequeno que lhe empoalhava os cabelos e a cara, Francisco franziu os olhos contra um repente de raios de sol. Escarranchado aos ombros do pai, mãos bem apertadas nas dele, sentia-se muito mais alto que todos aqueles passos percorrendo liberdade num grito ritmado e determinado: «25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais»!
Soava-lhe a festa, já sabia falar e ouvir, mas havia uma coisa que lhe despertou dúvidas. Perguntou, mais inclinado para os ombros do pai: «Por que é que estão todos a dizer Francisco nunca mais»?
Naquele turbilhão de alegria lutadora, a dúvida do pequeno Francisco tinha razão de ser. A palavra fascismo não constava do seu léxico. Mas a pergunta feita do alto de um trono de ombros paternais pode levar-nos directamente a outra: O que significa hoje para a juventude nascida neste quarto de século a revolução que fizemos também em nome da grande aventura a que chamamos futuro?
Os pequenos Franciscos não sabem, felizmente, que tiveram a sorte grande de serem das gerações de Abril. Que não tiveram de pagar talvez o mais difícil dos impostos: o que nos foi tributado, com todos os juros conhecidos, desde a prisão à tortura, passando por longos exílios, a percorrer, dentro ou fora do país, caminhos que nos roubavam da nossa própria terra.
E, pecador, me confesso. Antifascista, comunista, combatente desde os 20 anos, tenho hoje inveja desta juventude que nasceu sem prisões políticas, que cresceu sem o ferrete de uma época asfixiante, que pode agir sem ter o pensamento agrilhoado a sufocar o próximo passo, que não tem já que sussurar ideias no escuro de uma mão apertada de despedida, até não saber mais quando.

Com Abril plantámos um cravo vermelho no nosso caminho de percorrer mundo. Desde o ruir da ditadura até ao fim do colonialismo fomos deixando nele, de punho erguido, o nosso desejo de paz e também o que fraternalmente significa igualdade de direitos, na sua mais ampla expressão social.
À espreita da espingarda mais florida que a guerra jamais viu, Abril foi o grande protagonista de uma portuguesa modernidade. Mais: persiste em não se consentir data do passado. Continua como portador da história, de ideias e valores indispensáveis à solução dos problemas com que nos debatemos hoje no mundo e no país.
Há preocupações graves que ensombram o futuro, como a injecção forçada e infectada da «globalização» - económica, técnica, cultural, científica, socialmente degradante – a que os jovens terão que fazer frente, na desigualdade crescente de ricos e pobres em cada país e entre países. Com milhões de seres humanos condenados a um destino de injustiça pré-programada.

Há quem se queixe de indiferença juvenil perante problemas do mundo de hoje e de valores para lhes fazer frente. A nossa experiência não confirma essas ideias pessimistas. Pelo contrário, em encontros nas últimas semanas realizados com milhares de jovens de escolas por todo o país, enfrentámos sempre sorrisos de quem quer compreender e aderir a valores vastos, descobertos, examinados com olhar curioso dos que rasgam a magia do futuro. E há uma certeza que fica naqueles olhares perguntadores, ansiosos de querer olhar ainda mais: com estas gerações de Abril, e através delas, teremos garantidas outras madrugadas por elas caminhadas, imaginadas e libertadas – as de um melhor porvir.
Francisco, hoje já adolescente, era, domingo, porta-bandeira de um cravo de Abril. E ao levá-lo, agora desfilando pelos seus pés, compreende o que é viver e continuar esta cor primaveril: afinal, o destino pode ser alterado com a determinação de quem ergue uma flor. — Aurélio Santos


«Avante!» Nº 1326 - 29.Abril.1999