Manobras de Abril


Não há como um aniversário redondo para que as coisas pareçam passar-se de forma diferente.
Neste caso, sem dúvida que a passagem dos 25 anos do 25 de Abril não deixou de despertar nos vários canais televisivos atenções fora do comum e, até, a produção de peças de investigação jornalística e programas evocativos de novo tipo, já não exclusivamente subsidiários das repisadas imagens de arquivo.
Claro que nunca é demais louvar, numa primeira apreciação mais genérica, o claro esforço de trazer à luz do dia a memória da Revolução dos Cravos e mesmo de alguns aspectos da luta antifascista - como foi, por exemplo, uma entrevista com Jaime Serra há tempos transmitida a propósito do papel da ARA - mesmo que alguns canais não tenham escapado à irreprimível tendência para também não esquecerem o 24 de Abril, nomeadamente ao insistirem em voltar a dar a palavra à desfaçatez impudica e provocatória dos próprios esbirros do regime fascista.
Desprezando esse tipo de emissões que mais não merecem do que a reiterada expressão do nojo, não pode deixar-se de também referir a estranheza que entretanto rapidamente se transformou em espanto face ao esquecimento, nestes últimos dias, de muito do que se relacionasse com os comunistas e o seu partido – isto, independentemente de um notável «Portugalmente» dedicado na semana passada à heróica vila do Couço e, claro, das próprias transmissões das cerimónias oficiais do 25 de Abril... Uma omissão, objectiva e indisfarçável, mesmo que, desta vez (curioso!) não tenha sido demasiado sublinhada a velha ladainha da «subversão da pureza inicial de Abril» ou dos riscos de «novos totalitarismos» - temática que, regra geral, costumava acompanhar anteriores balanços televisivos.
Ou seja: assegurado à partida o despiste do espectador, subjectivamente provocado pela fragmentação de informação por quatro canais, era esta uma forma mais subtil (porque menos primária na forma) de passar por cima do papel histórico do PCP e dos seus dirigentes e militantes. Quase sempre invocados e evocados quando se trata de elogiar (também era melhor!) a firmeza das suas convicções ou a persistência dos seus sacrifícios na luta antifascista pela Liberdade e pelo derrube da ditadura, mas logo passando a um conveniente plano secundário quando se trata de deles dar conta na nova situação de Democracia e na construção desta, enquanto motores essenciais da manutenção e da defesa das liberdades, impulsionadores maiores das principais conquistas revolucionárias, e protagonistas, por direito próprio, de uma firme e persistente intervenção nas frentes institucional e da democracia representativa e participativa.

Enfim, se os comunistas estiveram artificialmente ausentes da realidade documental nas comemorações televisivas destes 25 anos e de muitas instâncias do seu debate, pelo menos não puderam deixar de «impor» a sua presença no argumento e nas personagens da peça de ficção que a RTP 1 em boa hora resolveu transmitir no horário nobre da emissão da noite de 25 de Abril.
O telefilme «Fuga», realizado por Luís Filipe Costa a partir da novela «Apuros de um pessimista em fuga», do escritor Mário de Carvalho, revelou-se, então, uma peça televisiva digna do maior interesse. Debruçando-se sobre a angústia de um militante comunista de base na fuga à perseguição da PIDE e em busca de poiso para passar em segurança a noite até à hora do encontro com um «contacto» do Partido na manhã seguinte - o telefilme permite-nos acompanhar as 24 horas por ele passadas em bolandas, com frequência assaltado por receios infundados, invariavelmente enfrentando recusas de «amigos» com a justificação egoísta de que a oferta de guarida poderia provocar desagradáveis dissabores, e acabando por dormir na sua viatura para não chegar atrasado a essa tarefa partidária.
Entretanto, ironia das ironias, e pesem embora as preocupações do nosso herói em não faltar ao encontro, uma vez lá chegado, e após longa espera, ele acaba por desistir e abandonar o local combinado (conforme mandavam as regras de segurança), pensando com os seus botões que «alguma coisa deve ter acontecido».
E aqui reside o achado da novela e do filme: essa «qualquer coisa» era, afinal, nada menos que a eclosão da Revolução, facto que teria implicado, seguramente, a necessidade por parte do camarada do Partido de faltar ao encontro e assegurar outras tarefas porventura mais prioritárias.
Utilizando muito poucos diálogos e optando em largos momentos pela narração em off ou pelo uso do chamado monólogo interior, «Fuga» assume, assim, ao nível da imagem, a ilustração sequencial das movimentações da personagem principal, embora com frequência interrompidas por flash-backs essenciais à compreensão da história. Flash-backs que têm a originalidade de recusarem uma cronologia meramente mecânica (e, assim, despertando no espectador a necessidade da construção da sua própria narração, que se vai fazendo e refazendo) e que, outras vezes, são substituídos por planos de corte ou mesmo sequências inteiras, quase sempre a preto-e-branco, sobretudo quando as mesmas se referem a reflexões do fugitivo marcadas por «alucinações» e «suposições» em relação a factos não verificados na realidade mas que apenas funcionam na sua mente humanamente assustada e, às vezes, até insegura - naquilo que é, ao mesmo tempo, o sublinhar dos perigos da luta e a caracterização social e de classe da personagem principal.
Na interpretação, o destaque vai para a representação da figura do militante em fuga construída por um cada vez mais cinematográfico Diogo Infante, bem acompanhado pela intensa representação do olhar por parte de Margarida Marinho (no papel da sua companheira) e, sobretudo, de João Lagarto, numa das suas melhores interpretações em televisão, na breve mas sempre difícil composição de uma personagem desistente, fracassada e insegura. — Francisco Costa


«Avante!» Nº 1326 - 29.Abril.1999