Maio e os outros
Não falando - e com algum remorso - do que,
pelo mundo, mais nos toca as consciências e os sentimentos (a
indignação pela bárbara agressão à Jugoslávia ou a
expectativa de um remate feliz para Timor que consiga vencer a
criminosa opressão indonésia), ficamos, por cá, em Portugal,
com dois acontecimentos de relevo para comentar, ao longo de uma
semana. O relevo somos nós que o damos ou a generalidade da
comunicação social que lhos empresta. E esse relevo, esse modo
de o ver e de o comunicar, é naturalmente diverso.
Dir-se-ia que, sentado em frente da televisão, o cidadão comum
passou o fim de semana em Coimbra, dentro de uma sala vazia de
participação mas cheia de palavras e de comentários: era o
congresso do PSD. Outro cidadão qualquer, com motivos mais
fortes a dar-lhe alento, participou, entre os muitos milhares que
o fizeram de Norte a Sul, em dezenas de cidades e em todos os
distritos, nas combativas manifestações que celebraram este
1.º de Maio.
Não são dois países que convivam nos mesmos dias do
calendário, nem universos paralelos ao gosto da ficção
«científica» arrancada a algum «ficheiro secreto». Trata-se,
de facto, por um lado, de um país virtual, montado para toda a
gente ver e convencer-se de que o importante se passava no
interior de um pavilhão deserto na maior parte do horário; por
outro lado, de um país real que, arrostando a tempestade e a
chuva, veio à rua saudar este 1.º de Maio que celebrava os seus
25 anos em liberdade e combater pelas causas que Abril consagrou
no seu projecto.
Que se passou em Coimbra, durante todo o fim de
semana, para que, lampeiras, as TVs lá se demorassem tanto? O
debate de uma nova estratégia que tornasse necessário um
congresso? Propostas novas que colocassem ao País a necessidade
de uma ponderação? Interrogações sobre o futuro? Caminhos
para o desenvolvimento? Sequer a resolução de alguns dos
problemas que afligem a maioria dos portugueses?
Nada disso. Tal como em outros congressos do PSD - que os faz aos
molhos porque à dúzia sai mais barato -, mais do que em outros
já realizados com o mesmo estardalhaço mediático, nada de
fundamental se discutiu, nem sequer a arrumação da casa.
Tratou-se apenas de vender a imagem de um novo líder, escolhido
por antecipação e que ali foi embrulhado numa votação para
português ver. O facto de uma mesma maioria que aprovou uma
estratégia e um líder, haver, poucos meses depois e desta
feita, aprovado a estratégia contrária e outro líder, não
parece ter envergonhado os promotores da festa nem ao menos um
dos seus participantes.
E agora? As novidades são nenhumas, tirando a rendição do
pessoal, ao novo gosto de Barroso. Liberto da AD e do
incomodativo Portas, não se livra o PSD das dificuldades em
afirmar perante os eleitores uma orientação política
substancialmente diferente da que o PS de Guterres vai fazendo
vingar. Nem sequer com as novas listas ao Parlamento Europeu
conseguem comover alguém, coroando com Pacheco um rol onde se
não descortina a competência, tal como, do lado do PS, Mário
Soares não esconde, com a imensidão da sua candidatura, a
ninharia dos outros candidatos.
Longe de nós a pretensão de ensinar o padre
nosso ao vigário, de tentar mostrar aos profissionais da
informação e a alguns esganiçados repórteres que há mais
coisas e muito mais interessantes com que preencher as extensas
horas de um longo fim de semana. A escolha não foi certamente
deles, mas de quem pode e manda formatar o mundo e distribui o
produto - uma visão redutora da realidade nacional. Nós
sabemos, e muitos milhares de portugueses connosco sabem, que
mais vale o testemunho breve de um trabalhador que luta em defesa
dos seus direitos e que, celebrando Maio, lança a sua força num
projecto de justiça do que dúzias de entrevistas aos barões
despedidos e despeitados ou àqueles outros que lhes tomaram os
lugares. Que teria valido a pena ir de terra em terra ouvir esses
testemunhos que provam que Abril está vivo e não é apenas uma
efeméride; que Maio não apenas comemora mas faz o balanço das
batalhas, denuncia as armadilhas do poder, apela para novas
lutas.
Em Lisboa, no Porto, em cidades grandes e pequenas,
em todos os distritos do País, os trabalhadores saíram às ruas
e, num largo e verdadeiro diálogo em que ouviram discursos e
levantaram as suas vozes, manifestaram a disposição de
continuar a lutar pelo projecto de Abril. Falou-se de questões
muitos concretas, de problemas muito sentidos, de realidades
muito vivas. Deram-se exemplos de vitórias, denunciaram-se
perigos, definiram-se caminhos, demonstraram-se esperanças,
revelou-se determinação.
No centro das preocupações e na mira das lutas está o pacote
laboral - esse presente envenenado da política de direita. «Se
mantivermos a chama desta luta», afirmou o Coordenador da
CGTP/IN, «não deixaremos passar a revisão da lei das férias e
do conceito de retribuição, não permitiremos que os objectivos
do diploma do trabalho nocturno sejam uma realidade por via da
contratação colectiva. Não permitiremos que o trabalho a tempo
parcial se transforme numa forma de trabalho normal que levaria
à redução do salário e ao aumento da precaridade e que
constituiria um pretexto para o patronato resistir à necessária
redução dos horários de trabalho».
Apelando à convergência de todas as lutas em curso
e à realização, em 16 e 17 de Maio, de várias iniciativas
sectoriais que dêem «expressão forte ao descontentamento dos
trabalhadores e às suas propostas e justas reivindicações»,
Manuel Carvalho da Silva não deixou de falar de outras frentes
em que os trabalhadores se empenham, não apenas na defesa dos
seus direitos sociais e laborais, mas também na frente
política: intervindo nas eleições europeias «por uma Europa
com dimensão social»; nas eleições legislativas, «apoiando
aqueles que quiserem decididamente estar com os trabalhadores».
E, dando voz às muitas vozes que pelo País se levantaram e às
palavras inscritas em muitos cartazes nas manifestações, não
deixou de afirmar a solidariedade dos trabalhadores portugueses
para com o povo de Timor; nem o seu repúdio pela agressão da
NATO à Jugoslávia. A favor da paz.
De facto, uns celebraram Maio. Os outros não.