Portugal e a NATO
Por João Amaral
Adio por algumas semanas a conclusão da série de artigos sobre a VII Legislatura para poder registar de imediato algumas considerações sobre a posição de Portugal face ao novo conceito estratégico da NATO aprovado em 23 e 24 de Abril na Cimeira de Washington.
As ideias mais
chocantes contidas nesse documento, com o qual a NATO
"comemorou" o seu 50º Aniversário, não caíram do
céu de repente. Elas vêm sendo preparadas há muito tempo, não
só em Washington e na sede da NATO em Bruxelas, mas também nos
diferentes países membros, incluindo em Lisboa. De facto, muitos
dos debates políticos e das decisões tomadas em Portugal na
área da defesa nacional nos últimos anos ligam-se à
preparação e implementação da nova estratégia da NATO. Foi o
que sucedeu por exemplo com os debates e decisões sobre o
reequipamento das Forças Armadas ou sobre a questão da
profissionalização e abandono do Serviço Militar Obrigatório.
Também algumas alterações constitucionais foram feitas com
esse objectivo.
Todos esses debates e decisões têm subjacentes os aspectos que
mais criticados estão a ser neste novo conceito estratégico da
NATO, particularmente a assumpção pela NATO, como doutrina
oficial, da possibilidade de actuações militares ofensivas,
contra terceiros países, fora dos limites da sua área de
actuação e mesmo sem mandato da ONU, conferido nos termos da
Carta pelo Conselho de Segurança. A linha de rumo traçada pelos
Governos (quer o de Cavaco Silva, quer o de António Guterres)
foi a de preparar as Forças Armadas portuguesas para
participarem neste tipo de missões. Foi com esse pano de fundo
que foram aprovadas as últimas leis de programação militar e
que estão a ser tomadas as decisões sobre a
profissionalização das Forças Armadas.
A guerra da Jugoslávia tem aliás, entre muitas outras razões,
também a razão de ser, para os Estados Unidos, de forçarem a
aprovação deste novo conceito estratégico. De facto, contendo
uma despudorada violação dos princípios da Carta das Nações
Unidas e do direito internacional em geral, o novo conceito
suscitou reservas entre alguns membros da NATO. Para vencer as
resistências, a solução radical foi pôr esse novo conceito em
execução mesmo antes de ser aprovado. É o que está ser feito
na Jugoslávia.
Numa análise feita à luz da posição de Portugal face a este
novo conceito estratégico (que assume, com inteira propriedade
etimológica e política, a face de uma estratégia
imperialista), importa dar relevo a quatro aspectos. De um lado,
a questão da hierarquia dos conceitos estratégicos (o da NATO e
o de defesa nacional); por outro lado, a questão da legalidade
do novo conceito, face à Constituição da República e aos
Tratados aplicáveis; por outro lado ainda, o modelo de Forças
Armadas; finalmente, as "facilidades" concedidas por
Portugal aos Estados Unidos, designadamente nos Açores.
Quanto à questão da legalidade, a leitura da Constituição, da
Carta das Nações Unidas e do Tratado constitutivo da NATO não
deixam margem para especulações. A realidade é que o novo
conceito estratégico da Aliança Atlântica não pode vincular
legalmente Portugal.
A Constituição da
República, no seu artigo 7º, impõe ao País reger-se nas
relações internacionais pelos princípios do respeito da
soberania, da não ingerência nos assuntos internos da solução
pacífica dos conflitos. Estes princípios não são preteríveis
nem excepcionáveis. Aliás, durante a última revisão
constitucional chegou a ser proposto a adopção de um direito de
ingerência em nome dos direitos humanos e dos direitos de
minorias, mas tal princípio não teve consagração (se o
tivesse, seria em violação do direito internacional).
Dir-se-á que o artigo 275º nº 5 prevê que as Forças
Armadas possam participar em missões humanitárias e de paz
assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faz
parte. Só que essas missões têm que se conformar não só ao
citado artigo 7º da Constituição como às regras do direito
internacional, particularmente à Carta das Nações Unidas.
Ora, a Carta não
tem duas leituras. Ela considera ilegítimo o uso da força
(artigo 2º), postula o princípio da não ingerência (artigo
2º, nº 7), advoga a solução política dos conflitos (artigo
33º) e só admite o uso da força nos estritos limites do
Capítulo VII, com aprovação do Conselho de Segurança,
executada por Força da ONU, depois do fracasso das medidas não
militares e para repor o direito internacional e a paz, violada
por uma parte. Quanto às organizações regionais (como a NATO),
admite-as, mas desde que se compatibilizem com a Carta.
Conclusão: enquanto a nossa Constituição está de acordo com a
Carta, o novo conceito estratégico da NATO viola-a. Mas não
só: viola o próprio Tratado de 1949, que fundou a NATO e que
nos artigos 5º e 6º circunscreveu o seu objecto à defesa dos
seus membros contra ataques externos. Por outro lado, no artigo
7º, afirma-se o princípio da prevalência da Carta das Nações
Unidas, incluindo a responsabilidade primordial do Conselho de
Segurança, que, no novo conceito, é afastada pelas decisões
unilaterais da NATO.
Ainda no plano da legalidade, o novo conceito viola também a
Acta Final de Helsínquia e a Carta de Paris, documentos base da
OSCE (Organização de Segurança e Cooperação Europeia), onde
se postulam os princípios da Carta das Nações Unidas para a
regulação de conflitos. Aliás, a OSCE é praticamente
destruída, com este novo conceito.
Sendo ilegal no que respeita às operações sem cobertura no
artigo 5º do Tratado de Washington (o tratado constitutivo),
também serão ilegais as utilizações do território nacional
que os Estados Unidos queiram fazer para essas operações, mesmo
que invocando o chamado Acordo das Lages. De facto, este Acordo
de Defesa só permite utilizações das bases nacionais nos
termos do Tratado da NATO. Fora deste Tratado, as utilizações
têm que ser autorizadas expressamente, caso a caso. Ora, as
operações previstas na nova estratégia da NATO não se
compaginam com o Tratado da NATO, pelo que não beneficia do
regime previsto no Acordo das Lages. Por outro lado, essas
operações estão fora do quadro da Carta das Nações Unidas, e
violam regras impostas ao Estado pelo já citado artigo 7º da
Constituição, pelo que a cedência das Lages e outras
"facilidades" aos Estados Unidos para as operações de
guerra admitidas no novo conceito estratégico da NATO são
ilegais.
Mas, pode este novo
conceito estratégico ser oposto ao conceito estratégico de
defesa nacional? O que tem dito o Governo, e particularmente o
Ministro da Defesa, sobre esta questão é uma inaceitável
inversão de valores e uma vergonhosa capitulação perante
interesses estrangeiros, particularmente dos Estados Unidos. A
realidade conceptual é a de que a primeira estratégia que tem
de ser definida é a estratégia do Estado para garantir a defesa
nacional. Evidentemente que a estratégia do Estado é definida
face às envolventes externa e interna, e nessas envolventes
estão as organizações internacionais (mundiais e regionais) de
que Portugal faça parte ou possa fazer parte. Mas não são
estas organizações que determinam a estratégia nacional. Mesmo
admitindo a presença de Portugal na NATO, não é a estratégia
da NATO que deve determinar os conceitos estratégicos nacionais.
Pelo contrário, o que deveria suceder era serem as estratégias
nacionais dos países membros a determinarem a estratégia da
Aliança que eles formam.
Esta inversão conceptual (que melhor se chamaria subversão da
estratégia nacional) conduz a consequência não só no plano da
política externa (por exemplo, hoje Portugal está em guerra com
a Jugoslávia para proteger os interesses dos Estados Unidos e
Alemanha na zona), mas também no plano da política militar. A
discussão sobre o modelo de Forças Armadas não é uma
discussão interna, fundada em critérios de participação e
controlo democrático. O modelo de Forças Armadas decorre da
submissão do País à estratégia global da NATO. Compram-se F16
e não aviões de patrulha oceânica porque na repartição de
funções que a NATO impõe o papel reservado a Portugal é fazer
escolta a operações aéreas agressivas. Equipa-se a Brigada
Aerotransportada não por necessidade de defesa nacional mas para
integrar um corpo do Exército de comando franco-italiano, por
sua vez integrada numa qualquer Força de Reacção Rápida.
Passa-se para o Exército profissional por este ser mais apto
para missões externas e não por quaisquer considerações
acerca da juventude. Vendem-se quartéis por se considerar
desadequado, para o tipo de Exército que a NATO pretende, um
Exército com um dispositivo amplo, "agarrado" ao
terreno. E outros exemplos se poderiam dar.
Por tudo isto, como
há muito tempo venho insistindo, a discussão do modelo de
Forças Armadas tem no seu bojo uma discussão de fundo sobre a
estratégia de Portugal. As Forças Armadas estão a ser
preparadas para integrarem forças agressivas, na lógica do novo
conceito da NATO. Estão a ser preparadas para serem a componente
armada de uma política externa de Portugal guiada em Washington
e, subsidiariamente, em Bruxelas, Berlim, Londres e Paris.
É urgente retomar a discussão sobre o modelo das Forças
Armadas, não para regressar às Forças Armadas de há dez anos,
mas para que elas não se transformem na "secção de
Lisboa" das Forças Armadas dos Estados Unidos/NATO.