NATO
- A polícia de choque
do complexo militar-industrial dos EUA
Por João Alferes Gonçalves
Um mês antes do início da agressão à Jugoslávia, o presidente dos EUA explicou a um grupo seleccionado de dirigentes políticos e militares as linhas directoras da política externa norte-americana para os próximos 50 anos. Disse, com toda a clareza, que os EUA querem controlar o mundo e que a NATO deve ser transformada na polícia de choque do complexo militar-industrial.
Foi em 26 de Fevereiro, em S.
Francisco, no Grand Hyatt Hotel. Num discurso de 50 minutos,
Clinton fez um retrato do mundo, tipo Polaroid, afirmou que a
economia americana deve defender-se fora das fronteiras dos EUA,
que vai utilizar a NATO como força de intervenção ofensiva,
que tudo isso custa dinheiro e que pediu ao Congresso para
inverter o declínio nas despesas militares.
Pelo meio ainda teve tempo para dizer coisas como esta: «As
mais sangrentas guerras do século começaram na Europa. Foi por
isso que trabalhei duramente para construir uma Europa que
finalmente está unida e em paz e democracia».
Na opinião de Bill Clinton, os EUA devem «aceitar a
inexorável lógica da globalização - que tudo, da força da
nossa economia à segurança das nossas cidades, ao bem estar do
nosso povo, depende de acontecimentos não só dentro das nossas
fronteiras, como a meio mundo de distância».
«Não podemos, de facto, não devemos, fazer tudo ou estar em
toda a parte. Mas onde há valores e os nossos interesses estão
em causa, e onde podemos fazer a diferença, devemos estar
preparados para a fazer. E devemos lembrar-nos de que o
verdadeiro desafio da política externa é resolver os problemas
antes que eles prejudiquem os nossos interesses nacionais».
Para a «resolução» dos problemas que possam prejudicar o
complexo militar-industrial dos EUA, Clinton conta com o modelo
de NATO que proclamou, em Abril, na cimeira do 50º aniversário,
ou seja, uma tropa de choque para policiar o mundo.
«Falar é barato, tomar decisões não», disse o
Presidente dos EUA, para acrescentar que foi por isso que pediu
ao Congresso «para inverter o declínio das despesas com a
defesa que começou em 1985».
Reforço do orçamento da defesa (despesas militares), inversão
da tendência verificada depois de 1985, o que quer isto dizer?
As despesas com a defesa representaram cerca de 6% do PNB durante
toda a década de oitenta, diminuindo, na década de 90, até aos
3,2% de 1998. O que o complexo militar-industrial pretende é,
pois, uma caminhada para a duplicação dos valores actuais.
Em 1998, o orçamento da Defesa cifrou-se em 260 mil milhões de
dólares, estando orçamentada já uma subida para 289 mil
milhões até 2003 (preços correntes). Isto representa um
crescimento de 11 por cento em cinco anos, mesmo antes do
reforço pedido ao Congresso.
Em 1998 as despesas com a defesa representaram 15,4% do total do
orçamento federal, percentagem que se mantém na previsão
orçamental de 2002.
O apóstolo Clinton
O conceito estratégico definido
por Clinton para a NATO, apelidado de «novo», já é velho.
Em Março de 1992, sublinhei, na newsletter «Análise», a
necessidade de se saber se as mudanças verificadas na prática
da NATO «correspondem ou não a uma filosofia de acção
baseada no uso da força para garantir ou promover situações
político-militares favoráveis à estratégia global da Aliança
Atlântica».
«Embora não existam nos documentos oficiais da NATO»,
acrescentava, «referências explícitas a uma mudança dos
conceitos estratégicos no sentido de operações ofensivas fora
da área do tratado, muitos especialistas em assuntos de defesa
têm defendido publicamente essa estratégia, com uma soma de
pormenores que revela o grau de estruturação das ideias».
Mas, se quisermos recuar um pouco mais no tempo, encontraremos um
arquétipo desta filosofia na década de 50, quando John Foster
Dulles pontificava no Departamento de Estado.
Dulles defendia a ocupação de posições militares um pouco por
todo o mundo, sempre que isso contribuisse para reforçar «os
interesses estratégicos dos EUA».
Para Foster Dulles, o inspirador da teoria da «retaliação
massiva», qualquer conflito Leste-Oeste traduzia-se numa cruzada
dos apóstolos do capitalismo, escolhidos por Deus, contra as
hordas do comunismo ateu.
Os seus críticos, nos Estados Unidos, dizem que ele considerava
a estratégia militar como uma subdivisão da teologia.
Um desses críticos, John Kennedy, em 1958, muito antes de ser
presidente, já apelava aos americanos para renunciarem ao
princípio de que deviam «encarar cada conflito militar como uma
cruzada moral, requerendo a rendição incondicional do
inimigo».
Se atentarmos na estratégia, na linguagem e nas exigências do
complexo militar-industrial dos EUA em relação à Jugoslávia,
facilmente concluiremos que Clinton está mais próximo de Dulles
do que de Kennedy.
Limpeza ideológica
À luz do discurso de S.Francisco,
só os distraídos irrecuperáveis e alguns jornalistas
portugueses seduzidos pelos efeitos especiais e pela maravilha
electrónica das bombas inteligentes é que não percebem que a
agressão à Jugoslávia tem muito pouco a ver com a sorte dos
kosovars.
Trata-se, sim, de uma autêntica limpeza ideológica, da
terraplenagem de um país que não quis ser absorvido pela NATO
nem pela União Europeia. Do esvaziamento violento de uma bolsa
no redesenhado mapa da Europa, da liquidação de um ponto
vermelho no decantado «flanco sul da Aliança».
Já vai longe o tempo em que este Estado e este regime concitavam
a simpatia do Departamento de Estado e do Pentágono (basta
lembrar que entre 1945 e 1960 a Jugoslávia recebeu mais dinheiro
dos EUA que todos os países da América Latina reunidos!)
De facto, quem se importa com os kosovars?
Os bombardeamentos provocaram, como já se sabia, um acréscimo
dos fluxos de refugiados. Mas a NATO não tinha nada preparado
para receber essas populações e a resposta posterior deixa
muito a desejar. Uma parte significativa (na verdade, ninguém
consegue quantificá-la) da ajuda é roubada no caminho e
negociada pelas várias mafias.
Quanto à ponte aérea anunciada com trombetas, apenas a Alemanha
cumpriu o que prometera (recebeu 10 mil refugiados). A França e
Inglaterra acolheram umas escassas centenas e os EUA
zero.
A agressão da NATO já matou mais de 500 civis jusgoslavos e já
provocou uma redução de 40 a 50% do PNB da Jugoslávia e não
evitou (pelo contrário, agravou) danos aos kosovars.
Desde o início da agressão e até 30 de Abril, a NATO despejou
mais de 11 mil toneladas de explosivos sobre a Jugoslávia, ou
seja, um quilograma por habitante. Foram lançados mais de 600
mísseis de cruzeiro.
O plano de destruição da Jugoslávia continua a avançar, sem
oposição real de quem quer que seja, designadamente das
Nações Unidas, cuja credibilidade talvez esteja a sofrer o
golpe de misericórdia.
Sobre o papel da Rússia, em especial de Ieltsine, limito-me a
lembrar que, há cinco anos, aquando do ultimato da NATO na
Bósnia uma fonte próxima do ministério da Defesa da Rússia
comentou assim os protestos e esboços de resistência do
Kremlin: «O governo de Ieltsine é um dos maiores fornecedores
da NATO no que diz respeito a informações estratégicas sobre
as forças armadas da Rússia. Aliás, não deixa de ser
conveniente para a NATO uma atitude de aparente oposição da
parte da Rússia: atenua o grau de arbitrariedade do ultimato,
dando a ilusão que os EUA não fazem, hoje, o que querem e lhes
apetece em todo o mundo».
A
estratégia definida pela Administração Clinton na
ex-Jugoslávia chama a atenção para o facto, já
conhecido, de a situação no Kosovo poder ser o próximo
foco de conflito a explodir. (in «Análise», Newsletter Internacional, Fevereiro de 1993) |