Os Meninos da Capa Preta

Por Mário Maestri


A América procura explicação para o massacre do subúrbio de Denver, quando dois estudantes teenagers, brancos, de boa família, penetraram em sua escola secundária, com capas pretas e múltiplas armas, fuzilando colegas e professores. A perplexidade nasce da dificuldade de explicar plausivelmente esse e outros sucessos, ocorridos nos últimos anos. Através dos media, educadores, psicólogos, pastores, polícias procuram restabelecer a confiança no American way of living.

As explicações são as mesmas dadas quando dos massacres de Edinboro, Jonesboro, Pear, Springfield, etc: a televisão banaliza a violência, famílias conflituais ou desfeitas produzem filhos violentos. O país tornou-se um arsenal, de portas escancaradas.
Os estraga-festas de sempre lembram que a violência familiar é fenómeno mundial, que os enlatados norte-americanos monopolizam os ecrãs do mundo e que tais desastres são um semi-monopólio da América. Quanto às armas, recordam que são meio, não causa.

Berço maldito

Quando algumas vozes isoladas recordam que as bases da civilização norte-americana se apoiam na violência, elas perdem rapidamente o direito ao microfone, apesar de ser quase óbvio o que dizem.
Nos USA, tudo é guerra. Mesmo que seja da Coca-Cola contra a Pepsi; da Ford contra a General Motors; da IBM contra a Apple; do MacDonalds contra a Pizza Hutt. E, na persecução da vitória, é justo e moral absorver e destruir o concorrente, verdadeiro inimigo.
A linguagem militar invade o mundo dos negócios. As empresas definem tácticas e estratégias. Organizam campanhas. Lançam ofensivas. Espiam os concorrentes. O empregado ideal é um guerreiro: jovem, ágil, implacável, agressivo e, sobretudo, substituível.

Vencer e vencer

O bem está na vitória; o mal, em deixá-la escapar. Nesse universo que desconhece desdenhosamente as determinações sociais, se fortalece a ideia da luta eterna entre o Império do Bem, corporização do sonho americano, e o Império do Mal, sua antítese.
As crianças são treinadas para vencer a todo custo. Fazem pequenos trabalhos remunerados. Aprendem a economizar e investir. Devem vencer os coleguinhas na escola, no desporto, nas brincadeiras. Embebidos em uma versão monetarizada do determinismo luterano, nada aterroriza mais ao jovem do que «to be a born loser». Ou seja, nascer perdedor. Todos pretendem terem sido paridos winners – vencedores.
Um mundo de conquistas ilimitadas encontra-se diante daqueles que souberem impor as suas razões nesse combate sem quartel. Na cultura norte-americana, a grande representação simbólica do papel do herói prometeico na eterna luta entre o bem e o mal é o confronto entre o sheriff e o pistoleiro, entre o cowboy e o índio, entre o policial e o dealer.

O meu negócio é matar

Os comics simplesmente potencializaram esse mito fundador. Criaram os super-heróis da modernidade, capazes de múltiplas proezas na luta pelo bem. Eles são belos, jovens, fortes, brancos, indivíduos quase comuns que vestem máscaras e capas exóticas. Seus antagonistas, ao contrário, são feios, não-brancos, monstruosos.
Para os senhores da América, a guerra apenas continua os negócios, em forma algo mais violenta, quando não é simplesmente o negócio. Tudo que se opõe à vitória, é o mal; tudo que está a seu favor, o bem. Varrer da terra os inimigos, sem perder um homem, é a continuação do sonho de terminar com a concorrência, sem gastar um dólar.
Destruir o concorrente, para sempre; esmagar o inimigo, com as próprias mãos; sair do combate incólume; brilhar fulgurante entre os winners, são representações do mito das possibilidades ilimitadas do indivíduo que faz as forças do mercado e da produção capitalistas trabalharem em seu favor.

A morte é bela

Na última década, a mundialização dos meios de telecomunicação transformou a guerra em espectáculo pirotécnico, no qual o principal protagonista é o mariner, com seus equipamentos futuristas, e os pilotos de caça, cavalgando aparelhos estrelares. Na televisão, a morte deixou de ser encenação do real, do imaginário ou do simbólico para assumir a dimensão de espectáculo em directo. Mais do que nunca, a morte tornou-se bela.
Altos e fortes como carvalhos, loiros e belos como espigas maduras de trigo, os guerreiros norte-americanos avançam entre os capinzais do Terceiro-Mundo ou surfam pelas nuvens do Mediterrâneo ou do Médio Oriente. Como verdadeiros deuses modernos, distribuem a morte sem serem bafejados por ela. A guerra torna-se um jogo virtual.
Corporizações do mal absoluto, os inimigos são árabes medonhos, africanos brutais, eslavos bárbaros, latino-americanos barbudos. São os outros, os estrangeiros, os diferentes. E, como nos antigos filmes do Far West, apenas os heróis têm rosto.

Tristes heróis

A manipulação mediática da questão dos refugiados kosovares permitiu que a América se unisse nesse magnífico espectáculo da morte televisiva, feira milionária da indústria bélica, com bombas inteligentes e aviões invisíveis, ou quase. A vergonha nacional criada pela fixação presidencial por charutos e periféricos era superada pela demonstração de poder imperial absoluto.
Para participarem de um desses macabros ballets patrióticos, os dois estudantes de Littleton deveriam arrolar-se nas forças armadas e esperar uns dois ou três anos. Com um pouco de sorte, superariam substancialmente o macabro score que obtiveram. Porém, talvez por quererem participar do jogo, logo, e como protagonistas únicos, negaram-se a fazer parte da impessoal máquina de guerra norte-americana.
Espigas amarelas, imaturas e meio desajeitadas, preferiram ocupar a ribalta do media, desfilando diante das câmaras com suas capas negras de super-heróis deslocados, ceifando a vida de colegas e professores antipáticos, sobretudo negros e desportistas, como pequenos demiurgos da morte, ao modo dos pilotos patrícios que violam os céus da Jugoslávia e do mundo.

Justiçando a inocência

Os negros foram mortos por que eram o mal, já que eram, cromaticamente, o contrário dos brancos, o bem. Os desportistas por serem guerreiros em tempos de paz, membros dessa elite estudantil norte-americana, senhora dos paradoxais prestígios e privilégios que os músculos asseguram num espaço construído para ser templo da inteligência.
A América jamais perdoará aos jovens da capa preta. Eles estragaram a grande festa nacional da Jugoslávia e, sobretudo, furtaram-se ao castigo, o que infringe outro tabu fundador da civilização norte-americana. Todo o acto contra o Império do Bem deve ser punido exemplarmente: a vingança é o único anestésico real à lancinante dor da derrota.
Ao juntarem-se num acto semi-simbólico às vítimas, os meninos da capa preta impediram que fosse praticada a catarse que neutralizou o trauma dos últimos student's killers norte-americanos – mandar para a prisão, e se for possível, para a morte, estudantes de 11 ou mais anos, dilacerados por uma civilização na qual a morte é um sonho para ser sonhado e vivido.


«Avante!» Nº 1327 - 6.Maio.1999