Em defesa da Autonomia do Poder Local

Por Jorge Pires
Membro da Comissão Política do PCP



No passado dia 30 de Abril o país foi presenteado com o anúncio por parte do Fundo de Investimento Margueira Capital S.A., dum projecto para um megabairro de luxo a construir na zona do actual estaleiro da Margueira. Um jornal diário caracterizava-o como sendo "Manhattan em Lisboa". Podia ler-se na legenda que acompanhava uma fotografia da maquete do projecto, da autoria dos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, que o princípio de privilegiar a construção em altura em detrimento da ocupação do solo prometia muita polémica. Esta foi uma mensagem que se pretendeu fazer passar, procurando desta forma transmitir a ideia de que o que está em causa neste momento é uma opção entre estilos diferentes, uma opção entre construir prédios mais altos ou mais baixos.

Não está em causa o trabalho desenvolvido por uma equipa de arquitectos que trabalhou de acordo com uma encomenda que lhes foi feita, nem se deve perder muito tempo á volta de estilos, mesmo que tenhamos opiniões críticas sobre o resultado do trabalho apresentado, porque esse é exactamente o caminho que os promotores do projecto e o Governo pretendem seguir neste processo, escondendo aquilo que efectivamente está em causa.
O que importa saber neste momento é se o Governo e em particular o primeiro ministro, estão disponíveis para anular uma portaria, que viola claramente a lei atribuindo no seu nº 4 competência excepcional, à Sociedade Gestora do Fundo de Investimento, criada no âmbito da reestruturação da Lisnave, para elaborar um plano de utilização e urbanização para os terrenos da Margueira. Desta forma, a Portaria não se conforma, com a legislação vigente, que expressa e claramente define a competência exclusiva das Câmaras Municipais para elaborar planos de ocupação dos solos.
Tal como disse a Presidente da Câmara Municipal de Almada, estamos perante um atropelo à Constituição da República, no que diz respeito à autonomia do poder local e uma clara violação da Carta Europeia de Autonomia Local. Ou será que este Governo que se apresenta como o campeão do diálogo, não vai ter em conta a onda de indignação e protestos que a apresentação do projecto levantou?
Pode-se mesmo afirmar que se este projecto tem alguma virtude, é a de neste momento reunir contra a sua concretização um amplo movimento em torno da Câmara Municipal. É necessário dizer a este governo que as pessoas pensam, que sabem o que é melhor para o seu concelho, que estão com uma autarquia que tem vindo a concretizar desde há 25 anos a esta parte um projecto de desenvolvimento integrado e sustentado e que nestes últimos anos como é bem visível atingiu níveis de desenvolvimento e bem estar, que colocam Almada como um dos concelhos mais desenvolvidos do país.
Ouvimos há uns dias da boca de alguém com responsabilidades na estrutura do poder central, que a alternativa à concretização do projecto agora apresentado é ir ao dinheiro dos contribuintes e pagar uma dívida que segundo o próprio está neste momento com os juros acumulados em cerca de 83 milhões de contos.

Mas quem são os responsáveis da situação? São os trabalhadores da Lisnave que viram ser tomada uma decisão que vai levar ao encerramento do estaleiro onde trabalhavam? São os Almadenses a quem querem tirar o poder legitimo de decidir sobre a gestão duma parte do território do seu concelho?

Não! Os responsáveis são aqueles que negociaram o plano dito de reestruturação do sector da reparação naval e que entre outras benesses permitiu que a Lisnave decidi-se encerrar o estaleiro da Margueira (um dos maiores do mundo) a partir do ano 2000, que as chamadas benfeitorias realizadas nos estaleiros fossem avaliadas em 43 milhões de contos sem que fossem avaliadas as malfeitorias nomeadamente na área do ambiente, que o conjunto de bancos a quem a empresa tinha dividas deste valor, através duma portaria do ministro Eduardo Catroga que os Mellos conhecem muito bem do grupo CUF, passassem a ter competência para implementar um projecto urbanístico na área do estaleiro e poderem por esta via serem ressarcidos das dívidas e respectivos juros acumulados pela empresa, que se criasse uma empresa de capitais públicos a Gestenave, para ficar com o pessoal remanescente, cerca de 1800 trabalhadores excluídos da Lisnave operadora.
O escândalo foi tão grande que até o liberal Pedro Arroja escreveu no "Diário de Noticias": «desta forma praticamente gratuita, o grupo Mello adquire, passando para a nova empresa de reparação aquilo que de melhor existe na Lisnave - a sua marca, os estaleiros, o melhor pessoal, os seus contratos - assumindo em contrapartida apenas os passivos correntes». Vindo de quem vem esta opinião, creio ser bastante elucidativa a forma como os dinheiros públicos foram esbanjados a favor de interesses particulares.

Mas não ficou por aqui o Governo do PS. Para que a operação ficasse completa, decide em Novembro de 1996 retirar a área do estaleiro do PDM de Almada, atitude que mereceu uma resposta enérgica da Câmara Municipal, que avançou com um recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, recurso que está a decorrer. Já em 1993, quando da aprovação do PDM nos órgãos municipais, o PS através das suas estruturas local e distrital, dos seus eleitos nos órgãos autárquicos e também dos seus militantes na CT da Lisnave, mostrou-se altamente empenhado em fazer incluir uma alteração do uso do solo, de industrial para habitação. Tal como escrevemos aqui nas páginas do Avante em Agosto de 97, o Governo de Cavaco Silva não teve coragem política para ir tão longe, mas passados poucos meses da posse do Governo PS, o Engº Guterres fez a vontade ao grupo Mello.

No texto da conferência de imprensa realizada pela Presidente da Câmara Municipal de Almada no passado dia 30 de Abril, pode ler-se que "Em primeiríssimo lugar é necessário que sejam devolvidas ao município as suas competências em matéria de planeamento e ordenamento do território." Este é na minha opinião o caminho a seguir, o único que pode permitir encontrar uma solução para os erros que o actual e anterior Governo cometeram. Não podem ser os interesses económicos deste ou daquele grupo a sobreporem-se aos interesses legítimos da população de Almada.

O PCP que desde a primeira hora denunciou o que estava em preparação, entregou na Assembleia da Republica um projecto de Decreto de Lei em que é exigida a revogação do nº 4 da Portaria 343/95, do Ministério das Finanças, datada de 22/9/95 e que a Câmara Municipal de Almada exerça em plenitude todas as competências urbanísticas que por lei lhe estão atribuídas na área designada por Margueira, como parte integrante do Município.
Mais uma vez o Governo do PS vai ser confrontado com a necessidade de decidir entre os interesses do grande capital e os interesses públicos. Normalmente decide a favor dos primeiros. A avaliar pelas declarações do presidente do conselho de administração da " Margueira Capital" que afirmou à comunicação social que a Câmara tem competências ao nível do licenciamento municipal, mas se a câmara não licenciar o Governo assumirá a sua posição retirando ao município as competências para licenciar, ou seja tudo indica que já existem compromissos neste sentido porque até agora ninguém com responsabilidades desmentiu esta afirmação, não podem os Almadenses ficarem descansados e por isso mesmo só têm uma solução, que é pressionarem por todos os meios o Governo para que este projecto não vá por diante.


«Avante!» Nº 1331 - 2.Junho.1999