Pela lógica da cooperação

Por João Amaral


Como era fácil de prever, a guerra contra a Jugoslávia e o papel imperial que os Estados Unidos nela assumem trouxeram à ordem do dia a questão da Política Externa e de Segurança Comum (PESC).
Levada a questão ao seu extremo, alguns, como o cabeça de lista do PS, deduziram, do papel subserviente e seguidista que a União Europeia assumiu, a tese da necessidade de um Exército Europeu. O que desde logo indicia uma conclusão: verdadeiramente, eles não são contra a guerra movida à Jugoslávia; acham é que a guerra devia ter sido feita, não pela Nato e pelos Estados Unidos, mas sim pela União Europeia e por um Exército Europeu.

Como resultado destas pressões, a União Europeia deu recentemente passos no sentido da integração da União da Europa Ocidental no seu seio.
Este facto é muito importante. Na realidade a PESC tem sido objecto de resistência e controvérsia e não tem tido a expressão política que os adeptos de uma crescente supranacionalidade europeia gostariam. Mas isso não significa que não tenha havido já passos dados. E, na ocasião da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, alguns desses passos passam a ter força jurídica. Algumas dessas inovações preparam uma lógica político-militar para a União Europeia. Merecem por isso que se recordem.
Quanto às alterações institucionais, o Tratado de Amesterdão cria o "Sr. PESC", o Alto representante para a PESC, que age em nome do Conselho. É portanto mais do que um Comissário para as Relações Externas. É uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, apoiado ao mais alto nível, o do Conselho.
Por outro lado, é criada uma Unidade de Planeamento da Política e Alerta Rápido, que depende do "Sr. PESC", e que tem por função apoiar a actividade do "Sr. PESC" e alertar o Conselho para conflitos potenciais. Integram esta UPPAR, representantes da Comissão Europeia, do Conselho, da UEO e dos Estados Membros. No fundo, é uma estrutura que mistura trabalho diplomático e informações estratégicas e militares.
A nível do processo de decisão, prevê-se um mecanismo novo, a abstenção positiva. Isto significa que, mantendo a aparência de exigência de unanimidade, a abstenção de um Estado não impede que a acção ou posição comum seja decidida e vincule os outros Estados e a União. É assim torneada e defraudada a regra da unanimidade. Um governo com dificuldades internas em assumir certas posições, pode, com a sua abstenção, tornada num verdadeiro lavar de mãos à pilatos, deixar a União de mãos livres.
Quanto à política de defesa, a União Europeia incorpora no Tratado de Amesterdão, as chamadas missões de Petersberg. Trata-se das missões que foram definidas numa reunião realizada em Petersberg pela União da Europa Ocidental. São as designadas missões de gestão de crise e as missões humanitárias, que têm o seu modelo precisamente na guerra da Nato contra a Jugoslávia.
Não é possível subestimar o significado deste novo procedimento. Ele corresponde à assunção pela União Europeia da capacidade de decidir acções militares, cuja execução é encomendada à UEO. Isto é, os Estados da União, incluindo os que não pertencem à Nato ou à UEO, passam a poder decidir operações militares. E a UEO assume o papel de organização militar de toda a União Europeia. Dada a amplitude das missões de Petersberg, isto significa que a União Europeia passa, teoricamente, a dispor de um instrumento militar apto para os conflitos previsíveis para os próximos anos.
Ainda no plano da política externa, é previsto que o Conselho possa delegar na Presidência realizar as negociações de acordos internacionais com terceiros Estados ou organizações, o que significa a construção de um treaty making power, típico do Estado soberano.
É no quadro de uma PESC com estes contornos que se desenvolve o debate sobre o Exército Europeu, face ao novo conceito estratégico da Nato e à sua aplicação na guerra da Jugoslávia com a direcção imperial dos Estados Unidos.
Antes de tudo importa qualificar o que entendem por exército europeu os seus defensores. De facto, duas hipóteses é possível pôr. Uma, mais extrema, é a de o exército europeu corresponder a umas forças armadas distintas das Forças Armadas dos Estados membros. Nesse caso, ao exército europeu corresponderia a necessidade não só de um financiamento próprio, mas essencialmente de um sistema de comando e responsabilidade política autónomo, e portanto supranacional. Dito de outra forma, um exército europeu nesses termos implicaria a existência de um novo Estado, o Estado europeu.
Outra hipótese, mais moderada, é a do exército europeu corresponder a um sistema permanente de preparação, articulação e integração das Forças Armadas dos Países membros, à semelhança do que sucede na Nato. Neste caso, o exército europeu pode ser suportado por uma estrutura de comando como a que resulta do Tratado de Amesterdão. Bastaria então integrar juridicamente a UEO na União Europeia. Quanto ao modelo de financiamento, ele continuaria a assentar essencialmente nos Estados membros, já que as despesas conjuntas não seriam muito grandes, dado competir aos Estados o pagamento do pessoal e equipamento.
O que liga estas duas hipóteses é qualquer delas assentar na ideia de que a União Europeia se deve portar no conjunto da sua área próxima de influência (conjunto da Europa, Mediterrâneo e Atlântico) com o uma potência militar. Isto é, qualquer daquelas hipóteses (apesar de expressarem concepções da União Europeia substancialmente diferentes) contraria a lógica de segurança e cooperação e submete-a a uma lógica d bloco político-militar.
Entre as vítimas da guerra à Jugoslávia e da reformulação do Conceito Estratégico da Nato estão precisamente os sistemas internacionais de segurança e cooperação. Desde logo, a própria ONU (o ex-Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas Porf. Freitas do Amaral, relatava num debate recente que na ONU já se levantam vozes no sentido de ser necessária uma refundação da Organização, hoje à beira do colapso, face ao unilateralismo dos Estados Unidos e da Nato).
A outra vítima é a Organização de Segurança e Cooperação na Europa. A OSCE integra os países desde os Estados Unidos e Canadá até à Rússia (de Vancover a Vladivostok). Tem a sua base jurídica na Acta Final de Helsínquia e na Carta de Paris. Assenta em três pilares: direitos, desenvolvimento e segurança militar. Qualquer desses pilares teria sido importante na situação nos balcãs. Mas a OSCE está subalternizada e manipulada. No Kosovo, onde entraram mais de mil observadores da OSCE com o acordo da Jugoslávia, foram mandados retirar pela Nato imediatamente antes do início dos bombardeamentos. Nestes meses de guerra a OSCE apagou-se.
A questão nova é a de se saber se a OSCE (com a presença dos Estados Unidos) está em condições de recuperar o seu papel. É cada vez mais duvidoso que os Estados Unidos o queiram. De facto, a Nato vai ocupando o território da OSCE, com o alargamento, as Parcerias para a Paz, os "protectorados" e os acordos com a Rússia e a Ucrânia. A lógica da segurança vai sendo substituída pela lógica do bloco.
O que pode tornar "atractiva" a proposta do Exército Europeu é ela poder aparecer como alternativa simultaneamente à Nato e ao desprestígio ou ineficácia de organizações como a ONU e a OSCE.
Uma resposta à situação actual que privilegie a lógica da segurança e cooperação, poderá então ter que explorar outras alternativas. Uma delas é a realização de um Pacto de Segurança e Cooperação euro-mediterrânico, envolvendo os países europeus (incluíndo a Rússia) e os países mediterrânicos, e excluíndo os países americanos. Esse Pacto e Organização respectiva, assumiriam no seu interior as potenciais conflitualidades da zona europeia, sem lhes acrescentar as que são próprias do hegemonismo americano. E seria assim o espaço determinante da estabilidade e desenvolvimento, para resposta aos problemas da Europa e do Mediterrânio.


«Avante!» Nº 1331 - 2.Junho.1999