A greve dos trabalhadores na CM da Amadora
Os méritos de uma luta

Por José Manuel Marques


A greve do trabalhadores do departamento de higiene e salubridade da Câmara Municipal da Amadora, ocorrida no início do mês passado, para além de outros méritos que cada um lhe poderá reconhecer, de entre os quais destaco a solidariedade das populações por um problema que afinal se afigura comum, e a unidade dos trabalhadores, também por uma causa comum (embora de repercussões diversas), permitiu-nos a todos reflectir um pouco mais sobre a problemática dos serviços públicos neste País, no caso particular aqueles que se prendem com a administração local.

É de todos conhecido o desfecho, não do processo (que esse está longe de vislumbrar solução), mas daquela etapa que constituiu a greve que entre dez e catorze de Maio colocaram a Câmara Municipal da Amadora e os seus trabalhadores na ribalta da comunicação social – os representantes políticos da autarquia envolvidos, Sr. Joaquim Raposo, Presidente, eleito pelo Partido Socialista, e Sr. Carlos Silva, vereador responsável pelo pelouro do Ambiente, eleito pelo PSD, assumiram o compromisso de encontrarem um novo modelo de gestão dos serviços em causa, do qual ficam à partida excluídas as possibilidades de privatização ou concessão, rumando-se pois pelo caminho da constituição de uma empresa municipal.
Para os trabalhadores e o seu sindicato, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local (STAL), esta não foi, certamente a melhor solução para o problema... para os referidos representantes da classe política da autarquia, pelo menos (e afirmo-o convictamente) para o vereador Carlos Silva, também não!...
Então, como e porque se chegou a ela?... O que levou trabalhadores, sindicato e autarcas a chegarem a este acordo?
A fria e calculista análise ao desfecho encontrado – o da criação de uma empresa municipal – não pode (nem deve) levar à pura conclusão de se ter encontrado o remédio para o problema da gestão dos serviços públicos na administração local, descobrindo-se de repente uma nova panaceia que se opõe decisivamente à da privatização!!!
Esta foi, efectivamente, a solução encontrada. Outras, noutros locais, confrontados que sejamos com outras realidades, serão certamente diversas... e mais vantajosas para trabalhadores, populações e autarquias!
Façamos então, para melhor se compreender, uma breve retrospectiva deste processo:

As razões da luta

Não são recentes os alertas feitos pelos trabalhadores do departamento de Higiene e Salubridade da Câmara Municipal da Amadora, em conjunto com o STAL, ao funcionamento e estado de degradação dos serviços em causa, nomeadamente os sectores de limpeza urbana (vulgo varredura) e recolha de resíduos sólidos (vulgo recolha diurna ou nocturna).
No entanto, é um facto indesmentível que estes problemas se agravaram com a actual gestão do Partido Socialista na autarquia, especialmente após o vereador acima referido ter assumido a responsabilidade específica do departamento em causa.
Salientam-se, de entre estes: As más condições de trabalho (falta de luvas, fardamento etc.); uma enorme carência de trabalhadores (estima o STAL, para a prestação de um serviço com níveis mínimos de qualidade, a necessidade de pelo menos quarenta cantoneiros de limpeza); a falta de viaturas e equipamento (agravada com o envelhecimento das existentes e a inadmissível carga burocrática sentida nas reparações, o que leva, frequentemente, à imobilização de mais de cinquenta por cento da frota existente); uma má gestão dos serviços (não se utilizando algum do equipamento existente e não se rentabilizando alguns circuitos de recolha, nomeadamente através do recurso ao horário nocturno).
Enfim, um conjunto enorme de problemas, para os quais os trabalhadores e o STAL foram alertando, quer através de ofício quer em diversas intervenções nas reuniões de Câmara e Assembleia Municipal, sem que da parte dos responsáveis políticos recebessem qualquer sinal de retorno.
A forma como se foi assistindo à degradação dos serviços, a par, refira-se, com algumas reuniões (e almoços) realizadas entre responsáveis da autarquia e da empresa privada SUMA, era o sintoma daquilo que trabalhadores e sindicato temiam, que acabou por se verificar no início do corrente ano – o Vereador Carlos Silva, quer em declarações a um jornal local quer em reunião pública de Câmara, afirmou a intenção de entregar a limpeza da cidade a uma empresa privada.
Porque me parece de especial relevo para que se possam entender as intenções de então, que não passavam apenas por um mero recurso a prestação de serviços para uma ou duas zonas do concelho, fica aqui a transcrição de parte de um artigo publicado no jornal «Notícias da Amadora»:
«Numa primeira fase, o Vereador admite a coexistência dos dois sistemas, a recolha feita pelos serviços da autarquia e outra por privados. Decidindo, posteriormente, pela prestação mais correcta e abarcando todo o concelho. Sendo, porém, de presumir que já há uma avaliação prévia que privilegia os privados.»
Estava, pois, de início, definido o destino daqueles serviços, quiçá mesmo negociado!

O processo de luta

Considerando ser possível melhorar, que a privatização não era a alternativa desejável, foram apresentadas, nas diversas reuniões realizadas com os eleitos da autarquia, um conjunto de propostas tendentes à melhoria dos serviços, ao mesmo tempo que era enviado um pré aviso de greve para o início do mês de Março.
Tais propostas, que não pretendiam ser a solução milagrosa, foram elaboradas e discutidas pelos trabalhadores que directamente laboram no sector, revestindo-se, portando, dessa elementar condição para um bom funcionamento de qualquer serviço – a experiência de quem a ele está directamente ligado – e passavam pela implementação de alguns circuitos de recolha aos domingos e a passagem de outros para horário nocturno, a aquisição de novas viaturas, a criação de uma linha verde de reclamações, a melhoria do sistema de lavagem manual de ruas, a rentabilização do equipamento existente, a criação de um sistema de comunicações mais eficaz, o combate à carga burocrática no arranjo de viaturas, o recrutamento de mais trabalhadores, entre outras.
Aceites após algumas reuniões realizadas, assumidas como compromissos, levando à suspensão da greve, a verdade é que passados cerca de dois meses a situação estava na mesma, praticamente nada havia sido cumprido, e o vereador recusava-se a reunir com o sindicato, chegando mesmo a fazer afirmações que davam conta da manutenção das intenções privatizadoras.
Tornou-se, então, inevitável o reassumir do processo de luta, tendo sido enviado novo pré aviso de greve para os dias dez, onze, doze, treze e catorze de Maio, para o trabalho extraordinário nos dias seguintes a estes e, para o dia dez, fruto de um intenso movimento de solidariedade que se havia criado nos restantes trabalhadores da autarquia, destinado a todos os trabalhadores.
Conscientes de que a população do concelho seria quem, indubitavelmente, viria a sofrer mais com a forma de luta definida, mas com a certeza de que a greve se destinava também, no fundo, à salvaguarda dos seus interesses – nomeadamente o da qualidade e da quantidade do serviço prestado -, foi dado início a um amplo processo de esclarecimento, que passou pela distribuição de setenta mil comunicados (quarenta e cinco mil dos quais via CTT), realização de carros de som e um debate público.
Tal medida, referira-se, veio a revelar-se de extrema utilidade, pois durante o período que antecedeu e aquele em que decorreu a greve não se sentiram praticamente reacções de condenação dos trabalhadores. Pelo contrário, a solidariedade e compreensão foram uma constante, assistindo-se mesmo um forte apoio, especialmente num lamentável episódio ocorrido na noite de doze para treze que mais à frente se dá conta.
Não havendo sinal que indicasse a tentativa de solucionar o problema (registe-se que o Presidente da autarquia chegou a manifestar-se, por diversas vezes, contrário a este processo mas, na minha opinião, esteve sempre preso ao acordo político que mantém com o PSD e, inclusive, à necessidade da posição deste partido na votação do processo de privatização da água), a greve acabou por ter início, com as naturais preocupações de todos, mas forte sentimento de unidade e determinação dos trabalhadores.
Registou-se, assim, uma adesão global de cerca setenta e cinco por cento no primeiro dia (com o sector operário e auxiliar a registarem adesões que variaram entre os noventa e cem por cento), sendo que o sector em causa manteve sempre uma adesão superior a noventa e cinco por cento, tendo apenas uma viatura feito a recolha normal de lixo (horário diurno) no concelho.
Os três primeiros dias – dez, onze e doze de Maio – foram sempre marcados, face à elevada adesão dos trabalhadores e consequente acumular do lixo nas ruas da cidade, pela intenção denunciada (e ameaçada) da autarquia recorrer a empresas privadas com o objectivo de violar a lei da greve, com a justificação de que não estariam a ser cumpridos os serviços mínimos, estando em causa a saúde pública do concelho. Refira-se, neste aspecto, que apenas no final do segundo dia de greve a autarquia oficiou o STAL sobre o cumprimento de tais serviços, tendo-lhe sido enviada resposta de que os trabalhadores em greve, que se mantiveram sempre em piquete, acorreriam a qualquer situação de perigo para a saúde pública que existisse ou que a autarquia solicitasse.
No entanto, na noite de doze para treze de Maio oito viaturas de três empresas privadas (uma delas a SUMA), acompanhadas por agentes da PSP (que durante os três dias de greve também acompanharam o piquete em funções), iniciaram trabalhos de recolha do lixo nas ruas da cidade, pelo que, prontamente, os trabalhadores intervieram, bloqueando-as.
Ante a atitude compreensiva dos trabalhadores de tais empresas e dos próprios agentes da PSP, um vereador, eleito pelo Partido Socialista, ainda ensaiou o apelo à violência, incitando os agentes da autoridade presentes ao uso da força para desmobilizarem o piquete de greve e os próprios trabalhadores da empresa privada para passarem «com a viatura por cima de todos».
Valeu a compreensão, mais uma vez, da PSP, e o apoio solidário e expontâneo da população presente que se insurgiu contra tal senhor.

Os compromissos assumidos

Só a presença no local do Presidente da autarquia e do vereador responsável pelo pelouro, que assumiram o compromisso de marcarem uma reunião para o final da manhã do dia 14 com o objectivo de serem discutidas alternativas à privatização, levou os trabalhadores a, em plenário realizado, suspenderem o pré-aviso de greve.
Na reunião, que acabou por se realizar apenas ao final da tarde (depois de vários adiamentos, aqueles dois representantes políticos ensaiaram fazer-se representar peles seus assessores) foi elaborado um "documento de intenções conjuntas", tendo aí ficado claro que a solução para os problemas da limpeza da Amadora não passará pela privatização ou concessão dos serviços, indo agora a autarquia iniciar um processo de discussão de um novo modelo de gestão (que deverá ficar concluído em meados do próximo ano), assente na criação de uma empresa municipal, processo esse que contará a participação de representantes do STAL num grupo técnico de acompanhamento que para o efeito irá ser criado.
Também naquele documento ficou salvaguardada a manutenção do vínculo dos trabalhadores, assumindo a Câmara Municipal da Amadora o compromisso de continuar a proceder ao investimento no sector em causa, quer ao nível dos meios humanos quer técnicos, tendo ainda ficado claro, na reunião, que o eventual recurso à prestação de serviços ocorreria apenas de forma temporal e destinada a colmatar situações pontuais.
Em forma de conclusão, é preciso salientar que das intenções iniciais manifestadas pelo vereador Carlos Silva à solução encontrada, há efectivamente significativas diferenças, fruto da luta travada pelos trabalhadores da autarquia, da determinação e unidade que sempre souberam demonstrar.
É que, se numa primeira fase tudo era admitido e as intenções caminhavam exactamente para a entrega ao sector privado de uma parte substancial do concelho (admitindo-se mesmo o todo), o caminho que foi sendo percorrido obrigou a uma alteração profunda em tais planos, chegando-se à solução da empresa municipal.
Obviamente que para o STAL, a solução ideal seria sempre a manutenção de um serviço público inteiramente dependente a autarquia. Não tenho aliás dúvida que essa será sempre a melhor solução para qualquer autarquia, a que servirá sempre melhor os interesses dos trabalhadores e das populações. Aliás, ao invés de surgirem provas de sentido contrário, as que existem apontam para o agravamento dos orçamentos das autarquias, para a diminuição da qualidade e quantidade do serviço prestado, para o surgimento de mais taxas, para a diminuição dos direitos e segurança de emprego dos trabalhadores.
A empresa municipal, podendo ser uma solução sempre a encarar, na medida em que nas três alternativas que a lei permite (empresa intermunicipal, municipal e de capitais mistos), é sempre a autarquia que fica detentora da maioria do capital, pelo que, logicamente, serão sempre os autarcas os maiores responsáveis pela gestão de tais serviços.
Na Amadora, esta foi a solução encontrada. Não a melhor certamente, mas a possível, dadas as intenções já existentes (e alguns passos claros no sentido da privatização). Ficou, no entanto, salvaguardado o fundamental – travou-se um processo privatizador, assegurou-se a manutenção de um serviço público!


«Avante!» Nº 1331 - 2.Junho.1999